Autorregulação das plataformas digitais: credibilidade e valor
Fato ou fake? É fato que há crimes e golpes financeiros na internet. É fake concluir que a prevenção, identificação e punição de tais ilícitos ocorrerá somente mediante intervenção regulatória. Os provedores que administram plataformas digitais podem, atendendo a seus próprios interesses, protagonizar a manutenção da integridade e credibilidade dos conteúdos veiculados, independentemente de decisão judicial ou lei.
O Marco Civil da Internet fez dez anos. Nessa década, as plataformas digitais ganharam relevância, com aumento exponencial de usuários e do conteúdo veiculado que influencia decisões, incluindo a compra e venda de ativos e valores mobiliários.
A tecnologia avançou facilitando a mineração de dados, a identificação de tendências e o roteamento de conteúdos customizados ao perfil dos usuários das plataformas. Por outro lado, ajudou a tornar imperceptível a falsidade de notícias e vídeos na internet, facilitando a prática de crimes financeiros. A boa notícia é que a mesma tecnologia que ajuda a majorar a patologia pode trazer a cura.
Os provedores não têm a obrigação de excluir o conteúdo digital publicado por terceiros, exceto se isso for objeto de ordem judicial. O provedor somente poderá ser responsabilizado por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para tornar o conteúdo indisponível.
Assim, nem sequer a emissão pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) de ordens de cessação de conduta e retirada de conteúdo ilícito da rede (stop orders) é suficiente para o provedor retirar o conteúdo ilícito da rede.
A necessidade de ordem judicial para exclusão de conteúdo ilícito é chamada de safe harbor para os provedores. Por outro lado, mal fariam os provedores de se fiar apenas nessa garantia, ainda que justificada pela impossibilidade de controle absoluto das plataformas sobre um sem número de manifestações. De fato, a possibilidade de escândalos financeiros de grande porte e a consequente pressão sobre legisladores poderiam em casos mais extremos abalar mesmo essa garantia.
Assim, atuação mais célere e eficiente interessa aos próprios provedores. Afinal, credibilidade gera valor e sustentabilidade do negócio deles. Para tanto, podem se valer de arranjos jurídicos típicos do exercício da autonomia privada, inclusive adotando o modelo de autorregulação integrada à regulação.
A história da evolução da interação entre regulação e autorregulação do mercado de valores mobiliários demonstra que os arranjos jurídicos e tecnológicos para manutenção da integridade e credibilidade dos mercados foram propostos pelos próprios agentes de mercado, que perceberam valor da integridade e credibilidade de suas plataformas de negociação.
Posteriormente, os arranjos bem-sucedidos foram recepcionados nas leis para que os órgãos públicos pudessem aproveitar a eficiência gerada em suas próprias atividades de supervisão e exercício do poder de polícia. Exemplo disso são as regras sobre componentes de autorregulação de mercados organizados, que constam da atual Resolução nº 135, de 10 de junho de 2022, da CVM. As quais servem de inspiração mesmo para mercados que não são abrangidos pelo normativo, como o de comercialização de energia.
São modelos que prestigiam a liberdade sobre a intervenção, podendo servir de inspiração para as novas normas em projetos de lei em andamento no Brasil, a respeito de regulação dos provedores de aplicações de internet.
Há dois projetos de lei principais que tratam desse tema, o PL 2768/2022, que regulamenta a organização e o funcionamento da concorrência entre plataformas digitais, e o PL 2630/2020, conhecido como PL das fake news, que se refere à liberdade, responsabilidade e transparência na internet.
Ambos fortemente inspirados em legislação europeia já em vigor, o Digital Services Act (DSA) – Lei de Serviços Digitais e o Digital Markets Act (DMA) – Regulamento dos Mercados Digitais.
O PL 2768/2022 objetiva o desenvolvimento econômico com concorrência entre os operadores, bem como entre os demais agentes econômicos afetados por suas atividades, propondo transparência e fornecimento de informações à Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel).
O PL 2630/2020, em regime de urgência, propõe estabelecer deveres ao provedor de empregar esforço tecnológico para garantir a confiabilidade e a integridade dos sistemas informacionais e de produzir relatórios trimestrais de transparência.
Tais relatórios incluiriam, dentre outras informações, medidas de exclusão de contas ou conteúdos, especificando as motivações, a metodologia utilizada na detecção do ilícito e o tipo de medida adotada. São providências extremas, nem sempre exigíveis de plataformas pelas quais fluem infinidade de dados e informações. Ainda que existissem recursos tecnológicos para fazer isso, permanece obscuro como formariam filtro confiável para detectar inconsistências em matérias que podem se estender da emissão de valores mobiliários a uso da energia nuclear, de costumes urbanos a informações sobre viagem por todo o mundo.
À luz dos argumentos acima sintetizados, seria fundamental incluir no debate normativo o estímulo à autorregulação das plataformas e estabelecimento de um eficiente processo de cooperação entre órgãos reguladores e autorreguladores, a exemplo do que ocorre no mercado de valores mobiliários. A qual poderia obedecer ao arcabouço e divisão de funções proposto com sucesso pela regulação de mercados organizados.
Imagem: Tima Miroshnichenko/Pexels