Cláusulas sandbagging em M&A “estressado”

É tentador fazer previsões de mercado a cada início de ano, mas elas devem sempre ser vistas com cautela. Isso é particularmente verdadeiro num momento em que o mundo enfrenta diversas incertezas geopolíticas e ambientais de grande magnitude. Ainda assim, ao menos uma tendência parece se manter firme em 2024: a atividade de fusões e aquisições (mergers and acquisitions, ou M&A) de ativos sujeitos a crise ou dificuldade financeira (distressed, ou “estressado”, em jargão) tem tudo para continuar relevante no Brasil, já que as empresas locais continuam a lutar contra taxas de juros domésticas elevadas, a moeda do país continua vulnerável a problemas fiscais e investimentos em M&A usualmente são pautados por considerações de longo prazo.

Operações de M&A tendem a ser complexas em termos jurídicos em virtude da assimetria de informação entre comprador e vendedor. Quando o vendedor enfrenta dificuldades financeiras, surge o risco adicional de que credores tentem interferir na operação, seja para questioná-la ou para responsabilizar o comprador por passivos preexistentes.

Alguns mecanismos são tipicamente usados em operações comuns de M&A em resposta a tal assimetria. Vão desde o acesso do comprador a informações do ativo e sua análise (due diligence) até declarações prestadas pelo vendedor em benefício do comprador.

Esses mecanismos podem se mostrar insuficientes ou impraticáveis quando o negócio envolve um ativo “estressado”: o acesso a informação pode ser difícil, o vendedor pode ser incapaz de fazer as declarações costumeiras, ou a janela para concretizar a operação pode ser muito pequena.

As assim chamadas cláusulas de sandbagging podem desempenhar papel essencial nessas situações. Um dispositivo pró-sandbagging preserva o direito do comprador de buscar indenização contra o vendedor por violação de declarações mesmo se o comprador já tivesse conhecimento da violação ao fechar o negócio. Em sentido oposto, um dispositivo anti-sandbagging proíbe o comprador de formular pretensões contra o vendedor por contingências já conhecidas.

A princípio, cláusulas pró-sandbagging são admitidas pelo direito brasileiro, mas as partes devem tomar cuidado e evitar simples tradução de textos padronizados tirados de contratos regidos por lei estrangeira.

A boa-fé objetiva é um princípio jurídico estruturante no Brasil. Contratos regidos pela lei brasileira devem ser negociados, celebrados, cumpridos e interpretados de acordo com padrões de boa-fé. Isso tem múltiplas implicações práticas. As partes não podem exercer seus direitos sob o contrato de modo abusivo, i.e., de uma forma que exceda a finalidade econômica ou social de tal direito (p.ex., negar imotivadamente anuência pedida pela outra parte, em certos casos). Ademais, as partes devem observar certos deveres primários mesmo que não escritos no contrato, tais como de cooperação (cada lado deve agir de modo a assistir o outro para implementar a operação) e de transparência (cada lado deve informar o outro sobre fatos que possam afetar a operação).

Um exemplo ajuda a realçar a intrincada correlação entre dispositivos pró-sandbagging e o princípio da boa-fé: descobrindo o comprador que uma dada declaração prestada pelo vendedor é incorreta e que o próprio vendedor não sabe disso, se esse comprador optar por fechar o negócio sem revelar os fatos em questão ao vendedor, sua pretensão contra o vendedor não será tão sólida quanto em países como EUA e Reino Unido, se baseada exclusivamente na cláusula pró-sandbagging. Se o vendedor conseguir provar que o comprador conhecia os fatos e os ocultou com o objetivo deliberado de acionar o vendedor, isso pode ser interpretado por um juiz brasileiro como uma renúncia ao direito alegado.

O Código Civil foi alterado em 2019 para reduzir a margem de manobra de juízes e árbitros (e, no que diz respeito aos juízes, conter também uma aparente inclinação) para intervir no equilíbrio e na alocação de risco escolhidos pelas partes em contratos privados. Basicamente, tribunais judiciais e arbitrais só podem revisar e “reescrever” contratos em hipóteses excepcionais e limitadas.

Essa mudança legislativa não significa que cláusulas pró-sandbagging sejam agora consideradas válidas em todo e qualquer caso. O status do princípio da boa-fé como espinha dorsal do direito privado brasileiro segue incólume – se é que não saiu renovado, pois a necessidade de interpretar contratos sob a perspectiva da boa-fé foi expressamente reforçada no Código Civil. Some-se a isso a tendência percebida em cortes brasileiras de intervir em contratos, e o resultado é que cláusulas pró-sandbagging não estão mais resguardadas do que estavam antes das alterações de 2019.

A eficácia de cláusulas pró-sandbagging no específico contexto de operações de distressed M&A ainda precisará ser testada, pois a jurisprudência a respeito é escassa. Não será surpresa se o Judiciário – especialmente os juízos responsáveis por falências e recuperações judiciais – for ainda mais leniente em prol dos devedores do que em contenciosos ordinários de M&A. Desde que a Lei de Recuperações e Falências foi promulgada em 2005, os juízos competentes para tais casos têm muitas vezes interpretado a lei com vistas a preservar empresas em crise à custa dos credores; se cláusulas pró-sandbagging forem vistas como ferramentas pró-credor que põem em risco empregos e arrecadação de tributos, é bem possível que os princípios da boa-fé (Código Civil) e da preservação da empresa (Lei de Recuperações e Falências) subjuguem o arranjo de sandbagging acordado pelo vendedor.

Essa relativa incerteza jurídica deve ser considerada durante a negociação de operações de M&A no Brasil, especialmente quando ativos “estressados” estiverem envolvidos. Atenção, comprador: seria um erro dar como favas contadas que uma cláusula pró-sandbagging basta para viabilizar um pleito contra o vendedor; redigir cuidadosamente dispositivos do contrato sobre alocação de risco entre as partes continua a ser uma tarefa vital.



Crédito da imagem: Pixabay

Autores L&S

Fernando de Azevedo Perazzoli

Fernando de Azevedo Perazzoli

Sócio

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