Aspectos concorrenciais de M&As de empresas em crise
Mesmo em tempos de estabilidade ou crescimento econômico, empresas endividadas podem enfrentar riscos de insolvência ou liquidez. Nesse contexto, frequentemente, as corporações são socorridas financeiramente ou reestruturadas, e os interessados precisam se atentar para as implicações dessas medidas no ambiente concorrencial.
Dois aspectos merecem mais atenção: (i) a possível necessidade de se notificar previamente ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica – Cade a operação de resgate ou reestruturação financeira da empresa; e (ii) o argumento de insolvência iminente como justificativa para a aprovação de uma operação que normalmente seria bloqueada pelo órgão antitruste.
a) Notificação prévia ao Cade e alternativas
O primeiro aspecto é relevante por dois motivos principais. Primeiramente, é uma questão de compliance, consistente em atender a eventual obrigação legal de notificação e evitar eventuais sanções pelo seu descumprimento, incluindo multa de até R$ 60 milhões. O segundo motivo é o impacto que isso pode ter no cronograma da operação, aspecto essencial em situações que envolvam crise de liquidez.
Se uma notificação for obrigatória, a operação não pode ser fechada até que a aprovação do Cade se torne definitiva. Eventual demora na análise antitruste pode fazer com que a situação financeira da empresa em dificuldades se deteriore significativamente.
A boa notícia é que mais de 85% das mais de 500 operações anualmente notificadas ao Cade são analisadas pelo rito sumário e aprovadas em menos de dois meses. Esse tempo considera tanto o prazo de até 30 dias para análise feita pela Superintendência-Geral como os 15 dias subsequentes durante os quais se deve aguardar eventual recurso de terceiros ou avocação pelo Tribunal do Cade.
Ainda assim, pode haver casos mais complicados concorrencialmente que inviabilizem a análise da operação pelo rito sumário, podendo a análise durar até 330 dias. Também pode haver situações em que mesmo o tempo abreviado de análise pelo rito sumário é incompatível com a urgência de injeção de capital de uma empresa em grave situação financeira.
A solução nesses casos pode ser utilizar estruturas que dispensem, ao menos em um primeiro momento, a notificação ao Cade, como: (i) aumentos de capital por aqueles que já integram o quadro social da empresa, sem alteração significativa das participações societárias; (ii) injeção de recursos por instrumentos de dívida, ainda que conversíveis em participação societária após a aprovação do Cade, incluindo os contingent convertible bonds (CoCo’s); ou (iii) instrumentos de investimento híbridos, em que se adquire participação societária até o percentual imediatamente inferior ao que obrigaria a notificação ao Cade e, simultaneamente, se subscrevem títulos de dívida conversíveis em ações ou quotas no montante restante.
Caso a aquisição de participação societária em percentual superior ao que obriga notificação ao Cade seja essencial às partes e as estruturas acima não sejam viáveis, há a possibilidade de se estipular um pagamento de sinal que resolva a situação de falta de liquidez da empresa-alvo, pagando-se o restante após a aprovação do Cade.
A lei antitruste prevê alternativa adicional consistente na solicitação de autorização precária ao Cade para fechamento da operação antes de a aprovação pelo órgão se tornar definitiva. O Cade tem sido extremamente restritivo na concessão desse tipo de autorização, tendo-o feito apenas uma vez desde a entrada em vigor da lei em maio de 2012.
b) Falência iminente como justificativa para aprovação
As soluções acima são pensadas para casos em que claramente não há problema concorrencial ou dúvida razoável quanto à aprovação incondicional da operação pelo Cade. Para casos em que a operação gere concentração de mercado relevante ou uma integração vertical envolvendo uma empresa com poder de mercado, a análise será provavelmente mais longa e a operação pode até ser bloqueada pelo Cade.
No caso de empresas em crise, no entanto, as partes podem invocar a failing firm defense, que equilibra a necessidade de preservar a concorrência com a realidade econômica das empresas em crise.
A defesa considera que, quando se trata de fusões envolvendo empresas em crise, qualquer redução no número de concorrentes nesse mercado não deve ser atribuída à operação em si. Em vez disso, as autoridades deveriam considerar, como contra factual, que a empresa falida e os seus ativos sairiam do mercado na ausência da operação.
A teoria da failing firm não é, contudo, um passe livre para concentrações de mercado elevadas sempre que uma empresa se encontra em crise financeira. Sua aplicação usualmente depende da verificação de outros dois requisitos além da iminente falência:
a) comprovação da ausência de alternativa de menor dano concorrencial para salvar a empresa (como a inviabilidade econômica de aquisição por um entrante, dada a ausência de sinergias, por exemplo); e
b) demonstração de que a falência da empresa eliminaria a oferta de seus produtos ou serviços do mercado (sem que, por exemplo, pudesse haver a entrada tempestiva de nova(s) empresa(s) valendo-se dos ativos da empresa falida adquiridos em leilão judicial).
O único caso em que a defesa da failing firm foi usada como fundamento relevante para a aprovação de um ato de concentração pelo Cade foi na análise da aquisição, pela Votorantim Metais Zinco S/A ("Votorantim"), dos ativos da Mineração Areiense S.A, uma empresa em falência (AC n. 08012.014340/2007-75). Naquele caso, o Cade concluiu que todos os elementos da teoria estavam presentes no caso concreto. Ainda assim, a operação não foi aprovada exclusivamente com base nessa teoria pois, ao final, o Cade concluiu que era improvável que as partes pudessem exercer poder de mercado pós-operação devido às condições de mercado existentes, à rivalidade entre os participantes do mercado e às baixas barreiras de entrada. No entanto, ficou claro naquele caso que a teoria da failing firm teve peso significativo na decisão final.
O Cade nunca aprovou uma operação com base exclusivamente na teoria da failing firm. Sempre que a analisou, afastou a aplicação da teoria como fundamento exclusivo para aprovar a operação, como nos casos Mataboi/JBJ (AC n. 08700.007553/2016-83) e Petrobras/Petrotemex (AC n. 08700.004163/2017-32). Em ambos os casos, o Cade concluiu que as partes não tinham comprovado que os três elementos mencionados acima estavam presentes no caso concreto.
A aplicação da teoria da failing firm, ainda que aceita após a verificação da presença dos requisitos acima, não implica aprovação irrestrita da operação pela autoridade antitruste. É possível, para não dizer provável, que obrigações comportamentais, ou até mesmo desinvestimentos, sejam impostos como condição para a aprovação da operação. Nesses casos, a habilidade negocial das empresas envolvidas e de seus representantes é essencial para a conclusão do processo em tempo compatível com a necessidade urgente de capital para manter a empresa em crise no mercado.
Crédito da imagem: George Morina/Pexels