A posição do credor em fusões e aquisições de devedor em dificuldades (distressed M&A)
A aquisição de uma empresa ou algum de seus ativos estratégicos pode ser desafiadora em si. Ganha camada adicional de complexidade quando o vendedor está em dificuldades financeiras. Em primeiro plano, as partes precisam considerar os riscos de que credores do vendedor tentem bloquear ou desfazer a operação ou responsabilizar o comprador pelas dívidas do vendedor.
Fusões e aquisições dos assim chamados ativos “estressados” (distressed M&A) são tipicamente discutidos do ponto de vista de comprador e vendedor. As discussões variam desde como cada lado pode obter maior proteção contra os credores do vendedor (por exemplo, acordando cláusulas pró ou anti-sandbagging, que regulam a responsabilidade do devedor por contingências de conhecimento do comprador) e indenização do outro lado se tal proteção falhar até meios de convencer as autoridades concorrenciais de que a operação desejada não vai afetar negativamente o mercado (a chamada defesa da “failing firm”).
De modo até certo ponto paradoxal, menor atenção é dada à perspectiva dos credores, a qual faz os negócios de distressed M&A tão complexos. Em muitos casos de maior relevo, credores conseguem perceber os sinais, antever que o devedor está no caminho da insolvência e se preparar em conformidade, mas isso não necessariamente é sempre verdade – mesmo para partes sofisticadas.
Dois exemplos recentes vêm à lembrança. Poucas pessoas no fim de 2022 previam que a varejista Americanas e a empresa fluminense de eletricidade Light viriam a pedir recuperação judicial (“RJ”). Em 2023, ambas o fizeram, cada qual sob circunstâncias bem peculiares: a Americanas viu-se imersa num enredo de fraude societária e contábil, enquanto a Light estava legalmente proibida de formular um pedido de RJ e estava se preparando para pleitear a renovação de sua concessão perante o governo federal (a própria interação com agências regulatórias e outras autoridades é um assunto de destaque na área de distressed M&A).
De início, o perfil do credor importa. Fornecedores, bancos e detentores de títulos de dívida (p.ex., debenturistas) podem ter interesses alinhados ou divergentes. A maior parte dos créditos costuma ser quirografária (sem garantias), mas alguns credores podem ter obtido garantia sobre o ativo que o devedor pretende vender ou outro ativo indiretamente envolvido na operação. O tipo de garantia também pode ser relevante para a estratégia do credor: alienação fiduciária em garantia (“AFG”) significa que o crédito não é afetado pelo processo de insolvência do devedor; penhor ou hipoteca implicará a classificação do crédito entre aqueles dotados de garantia real se houver pedido de insolvência; coobrigação de natureza pessoal prestada por terceiro, como um aval, não bastará para promover o crédito de quirografário a garantido (embora permita ao credor que processe o garante, contanto que tal garante não figure no processo de insolvência junto com o devedor principal).
Adicionalmente, três variáveis ganham relevo quando o credor descobre que seu devedor se tornou ou está em vias de se tornar insolvente e deseja realizar uma operação de distressed M&A: a natureza do ativo (controle societário sobre o devedor, controle sobre uma empresa subsidiária, um ativo isolado ou um conjunto organizado de ativos); a estrutura da operação (venda direta, subscrição de novas quotas ou ações, conversão de dívida em capital do devedor); e, digno de nota, o momento (antes ou no curso de processo de insolvência do vendedor, como uma RJ).
Após ter avaliado o contexto mais amplo, o credor estará diante de uma definição crucial: posicionar-se a favor da operação contemplada pelo devedor ou questioná-la, e em que medida negociar com qualquer das partes do negócio.
Esse contexto – fatos mais interesse econômico – é o ponto de partida ao se desenhar e implementar a estratégia jurídica. Obviamente, inexiste uma receita única para abordar todas as operações de distressed M&A, mas credores devem no mínimo atentar a certas questões que podem vir a enfrentar.
Advindo inadimplemento, o titular de crédito garantido por AFG terá a chance de escolher se excutirá a garantia sobre o ativo e portanto receberá o crédito (no todo ou em parte) ou se, em vez disso, se absterá da excussão e se envolverá voluntariamente nas discussões sobre o M&A.
Embora essa situação seja mais confortável (ou menos preocupante) que a de créditos quirografário ou com garantia real, ainda pode haver perigos à frente. Na RJ da produtora de café Terra Forte, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo entendeu que o titular de crédito garantido por AFG das ações de emissão do devedor insolvente deve ser equiparado a acionista e, portanto, não pode votar o plano de recuperação; a corte ainda afirmou que disposição contratual pela qual a Terra Forte deveria obter prévio consentimento de tal credor quanto ao plano de recuperação é inaplicável.
Credor que decida encampar um negócio de distressed M&A conduzido antes do protocolo de um processo de insolvência deve ser cuidadoso e não buscar do devedor o pagamento antes da data de vencimento da dívida ou por meio diverso do originalmente contratado. Nos termos da Lei de Recuperações e Falências, caso o devedor venha a falir, esses pagamentos anômalos podem ser presumidos fraudulentos e assim julgados ineficazes perante a massa falida.
Se o credor pretender se tornar acionista ou quotista do devedor, pode desejar submeter uma oferta concorrente com a do M&A proposto ou emprestar dinheiro novo ao devedor com perspectiva de conversão em capital (lend to own). Isso pode acontecer antes ou depois de iniciado um processo de RJ. Contudo, a posição do credor pode ficar pior se ele detiver uma posição minoritária no devedor. Não apenas a lei falimentar proíbe o sócio de votar o plano de RJ, na RJ da varejista de luxo Daslu o Superior Tribunal de Justiça entendeu que um credor que é também sócio minoritário não tem legitimidade para impugnar a homologação do plano de recuperação aprovado. Na RJ do grupo sucroalcooleiro Renuka, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo chegou ao ponto de desconsiderar o quórum previsto no estatuto social e permitir que a restruturação do devedor fosse em frente conforme prevista no plano de RJ à revelia do posicionamento de credor que detinha 40% do capital social da empresa.
Não tendo ainda sido iniciado processo de insolvência, credores que pretendam se opor ao distressed M&A normalmente alegarão potencial fraude contra credores sob o Código Civil. É mais difícil promover um caso de fraude sob o Código Civil que sob a Lei de Recuperações e Falências. O credor a princípio precisará comprovar que vendedor e comprador agem em concerto para intencionalmente prejudicar terceiros. Se o ativo objeto da operação forem ações ou quotas de emissão do devedor insolvente, é possível que o credor nem mesmo tenha ação direta de fraude contra tal devedor, já que a parte vendedora no negócio será provavelmente um sócio e não o próprio devedor.
Mesmo em circunstâncias adversas como essas, credores podem encontrar meios de interferir na operação de M&A ou ao menos de lançar as bases para um caso no longo prazo. Se o crédito já estiver sendo cobrado em juízo, credores podem buscar o caminho da desconsideração da personalidade jurídica para atingir patrimônio do vendedor (ou de seus sócios ou administradores). Alternativamente, credores podem apresentar em juízo um protesto contra a alienação de bens, uma espécie de notificação que não impede o fechamento da operação de M&A mas adverte o comprador de que o ativo estará sob risco no futuro.
Se o devedor tiver feito um pedido de RJ, alienações de ativos precisarão ser previstas no plano de recuperação a ser votado pelos credores ou autorizadas caso a caso pelo juízo sob o qual se processa a RJ. Em ambas as hipóteses, credores contrários à operação de distressed M&A têm pouca margem de manobra para agir.
Caso a operação tenha sido prevista no plano de RJ, o credor divergente pode votar contra ele na assembleia e, em caso de aprovação, impugnar sua homologação judicial. Com esse propósito, tais credores deveriam repetidamente afirmar sua posição de modo claro e fundamentado: uma vez que o devedor tenha submetido o plano em juízo, deveriam apresentar uma objeção escrita; durante a assembleia-geral de credores, deveriam submeter seu voto divergente por escrito, contendo motivação detalhada contra o plano. Essas medidas mitigam o risco de que o juízo da RJ posteriormente descarte o voto divergente sob o pretexto de ser abusivo (i.e., que seu objetivo último seria minar as chances do devedor de sobreviver à RJ).
Em caso de operação submetida a aprovação judicial fora do âmbito do plano de RJ, os credores deveriam tentar intervir antes de o juízo apreciar o pedido. A capacidade dos credores de questionar alienação já autorizada é restrita: para fazer tal questionamento, devem congregar créditos equivalentes a no mínimo 15% do total de créditos sujeitos à RJ; devem prestar caução em valor equivalente ao da alienação e pedir a designação de assembleia-geral de credores para votar a proposta de alienação, não que o juízo desfaça tal operação.
Farão bem os credores em não negligenciar decisões estratégicas e obstáculos cruciais ao longo de um negócio de distressed M&A do devedor, e em prestar atenção aos detalhes com vistas a proteger melhor seus interesses num contexto tão desafiador.
Crédito da imagem: Pixabay