Políticas públicas para preços de combustíveis: o que pode fazer sentido

A depender do nível de preços do petróleo e de seus derivados nos mercados internacionais e da taxa de câmbio, políticas públicas voltadas a permitir modicidade de preços finais ao consumidor podem ser defensáveis – como demonstra o panorama comparativo objeto de outro artigo desta Newsletter. Do expressivo aumento de preços dos últimos meses decorreram sugestões no sentido de que a Petrobras deveria abandonar o regime de paridade de preços de importação – o que seria má ideia. Este artigo discute os pilares do que poderia constituir política pública sólida nessa matéria.

Por muitos anos a modicidade de preços de derivados do petróleo no Brasil foi operacionalizada por meio da Conta Petróleo, Derivados e Álcool – a denominada conta petróleo. Decisões quanto a preço eram tomadas pelo poder público, e as diferenças entre preços-referência de mercado e aqueles efetivamente praticados eram lançadas a essa conta. A Lei n. 9.478/97 (Lei do Petróleo) levou à liquidação da conta petróleo, e desde então subvenções a preços de derivados básicos não foram praticadas senão episodicamente, como ocorreu em 2018 com relação à comercialização do óleo diesel, e novamente em 2021 com a redução a zero das alíquotas de PIS e COFINS incidentes sobre a comercialização e importação do óleo diesel e do GLP de uso residencial (P-13). Mais recentemente, foi instituído o auxílio Gás dos Brasileiros pela Lei n. 14.237/2021, voltado ao GLP consumido por famílias de baixa renda, e com duração limitada a cinco anos.

São recorrentes, no contexto de discussões sobre o tema, sugestões para que a União, acionista controladora da Petrobras, direcione sua política comercial de forma a alcançar modicidade de preços. Decisão nesse sentido teria efeitos nocivos – não apenas para a empresa, mas para a sociedade. O Brasil está na iminência do ingresso de novos agentes econômicos na atividade de refino, no contexto da alienação de ativos da Petrobras. Eventual subsídio aos combustíveis por ela comercializados, operacionalizado pela União enquanto acionista controladora, criaria distorção competitiva; e inevitavelmente resultaria em questionamento por concorrentes, de natureza antitruste e cível. Sepultaria também – esse o aspecto indesejado mais relevante do ponto de vista do interesse da sociedade como um todo – a possibilidade de instauração de ambiente concorrencial no downstream, precisamente no momento em que o país busca a competição plena nesses mercados.

Pilar central de política pública sólida nessa matéria deveria ser a adoção de regime de tributação flexível. Isso envolveria restaurar o papel extrafiscal original da CIDE-Combustíveis, conforme comentado adiante; e instituir incidência monofásica para o ICMS, com alíquotas específicas por unidade de medida, diretamente nas refinarias ou na importação. Com relação ao ICMS, trata-se da solução objeto de projeto de lei já enviado pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional (PLP 16/2021).

A CIDE-Combustíveis foi criada precisamente para desempenhar a função de ferramenta de política pública. Ela é devida sob a forma de alíquotas específicas, aplicadas por unidade de medida do combustível importado ou comercializado – sem relação com o preço final das operações tributadas. As alíquotas fixadas pela lei podem ser reduzidas e reestabelecidas por ato do Poder Executivo, até o limite máximo previsto na lei. Por ser contribuição e não imposto, sua receita pode ser vinculada a uma finalidade específica, incluindo o eventual pagamento de subsídios a preços de combustíveis. Nesse sentido a CIDE-Combustíveis se presta ao papel de ferramenta adequada para estabilização dos preços dos combustíveis, seja de forma direta, destinando suas receitas para subsidiar preços, seja indiretamente, calibrando sua alíquota com essa mesma finalidade.

Ocorre que alterações legais infirmaram o caráter regulatório da CIDE-Combustíveis. Inicialmente o produto de sua arrecadação não era compartilhado com Estados e Municípios, mas isso mudou a partir da Emenda Constitucional n. 42/2003. Atualmente, apenas 71% são destinados à União, dos quais 20% são objeto da Desvinculação das Receitas da União (DRU), restando, portanto, apenas 51% para emprego nas outras finalidades constitucionais, como subsídios de preços. Eventuais reduções de alíquota afetam interesses de Estados, Distrito Federal e Municípios e por isso tendem a ser objeto de resistência, o que dificulta o manejo ágil do tributo como instrumento de regulação de mercado. Faria sentido, neste contexto, o retorno de 100% das receitas da CIDE-Combustíveis à União, o que no entanto exigiria aprovação de Emenda Constitucional de difícil apoio dos Estados sem alguma forma de compensação. Opção menos dificultosa seria alteração via lei ordinária para prever mecanismo de destinação de ao menos os citados 51% da União para subsídio/estabilização de preços.

Com relação ao ICMS, os Estados vêm opondo-se às alterações propostas pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional. O tema comportaria discussão específica em artigo estanque; aqui nos limitaremos a comentar que não é razoável que atores tão relevantes quanto Estados e Municípios sejam mantidos alheios à confecção de política pública em matéria tão relevante. Os aumentos, muito expressivos, das receitas que vêm auferindo Estados e Municípios com transações relativas a combustíveis – relacionadas ao ICMS mas também a participações governamentais – decididamente autorizam discutir soluções compartilhadas, que envolvam competências e interesses também de Estados e Municípios.

PIS e Cofins incidentes sobre vendas de combustíveis também podem servir indiretamente como instrumento de estabilização de preços, por meio de alteração das alíquotas. Como receitas da arrecadação de PIS e Cofins têm outras destinações específicas previstas na Constituição e em leis complementares, tais contribuições não podem servir diretamente como fonte de receita para subsidiar preços de combustíveis ou para formação de fundo destinado a absorção de aumentos de preços, mas podem servir como ferramenta indireta de estabilização de preços por meio de alteração de suas alíquotas.

Mesmo um regime tributário flexível pode, no entanto, ser insuficiente para evitar níveis de preços finais aos consumidores considerados indesejados do ponto de vista de políticas públicas. O peso do gás de cocção no orçamento de famílias de baixa renda é a melhor ilustração dessa noção; mas também o impacto do preço do óleo diesel sobre os preços gerais da economia traduz de forma concreta essa preocupação.

São circunstâncias dessa natureza que justificam a discussão de mecanismos de subvenção a preços. Aqui impõe-se uma advertência: conforme demonstra um dos textos de Fernando Hamú nesta Newsletter, fundos de estabilização de preços não parecem ter funcionado a contento em nenhum país, nas poucas vezes em que foram instituídos. Além disso, a experiência brasileira relativa a fundos especiais também mostra a sistemática frustração dos propósitos para os quais foram criados – o Fundo de Universalização de Serviços de Telecomunicações (FUST) e o próprio Fundo Social, financiado com recursos da indústria do petróleo, são exemplos contundentes disso. São razões importantes de ceticismo quanto ao sucesso de eventual novo mecanismo de subvenção; seria preciso assegurar empenho e determinação do Poder Executivo que faltaram no passado no contexto de iniciativas dessa natureza.

Aspecto central diz respeito à fonte de financiamento a ser utilizada por eventual mecanismo dessa natureza. Como importante produtor de petróleo, é razoável que o Brasil utilize, para essa finalidade, recursos originados da própria indústria de petróleo e gás natural em benefício dos consumidores brasileiros, em lugar de concorrer com receita tributária geral.

Os números relativos à arrecadação da indústria corroboram essa lógica. Nos últimos anos, as participações governamentais recolhidas por concessionários de exploração e produção têm alcançado expressivo crescimento, segundo os dados da ANP. Entre 2016 e 2020 o total arrecadado com royalties e participação especial aumentou em mais de 110%: passou de cerca de BRL 20 bi em 2016 para cerca de BRL 42,2 bi em 2020. Apenas no terceiro semestre de 2021, a arrecadação superou em 35% o valor total do ano de 2016 (BRL 17 bi). O total recolhido em participações governamentais superou BRL 60 bi em 2021, e a expectativa da ANP é que permaneçam nesse patamar nos próximos anos.

Tais recursos poderiam ser suplementados pelos dividendos pagos pela Petrobras à União, que também têm crescido significativamente. Em 2018, 2019 e 2020, os valores em questão atingiram BRL 748 milhões, BRL 1,3 bilhão e BRL 1,6 bilhão, respectivamente. A estimativa é que os dividendos pagos à União em 2021 tenham superado BRL 20 bilhões.

Embora a Lei n. 14.237/2021 tenha previsto como fonte de financiamento do auxílio Gás para Brasileiros justamente dividendos da Petrobras e recursos resultantes do recolhimento de participações governamentais, a magnitude de ambas as fontes permite contemplar usos adicionais para tais recursos.

Utilizar esses recursos incrementais na instituição de mecanismo de estabilização de preços constitui solução sólida, e conceitualmente defensável, de repartir com a sociedade a condição do país de grande produtor. Trata-se de caminho capaz de atenuar os efeitos da volatilidade dos preços sem incorrer nas distorções que resultariam da intervenção em preços finais ao consumidor.

É preciso fazer observação final relevante. Nenhuma política pública nessa matéria poderá ser descrita como competente se não incluir componentes de incentivo ao uso de transportes públicos coletivos e de tributação favorecida de fontes renováveis e energia. São aspectos que, embora determinantes, escapam ao escopo desta Newsletter e serão objeto de edição específica.


Autores L&S

Bolívar Moura Rocha

Bolívar Moura Rocha

Sócio
Isabela Schenberg Frascino

Isabela Schenberg Frascino

Sócia
Isabella Tanuy

Isabella Tanuy

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