Destravando valor na nova Eletrobras
Em junho deste ano, foi concluída a desestatização da Centrais Elétricas Brasileiras S.A. (“Eletrobras”), em operação de mercado que movimentou aproximadamente R$ 30 bilhões. Por meio de uma capitalização, a União deixou de ser acionista controladora e o capital da empresa passou a ser pulverizado.
O Grupo Eletrobras concentra a maior fatia de ativos do setor elétrico nacional, especialmente nos segmentos de geração e transmissão, e teve boa parte de suas concessões renovadas no âmbito da desestatização. Com isso a Companhia deverá continuar a ser o maior protagonista do setor no país, agora numa nova fase de operação, mais alinhada às práticas comerciais do setor privado.
Esse processo constituiu uma privatização sui generis. O Grupo Eletrobras continuará prestando serviços públicos no setor de energia elétrica, na condição de delegatária do Poder Público, e deverá cumprir obrigações de natureza pública fixadas na lei que autorizou sua alienação. Ademais, como ocorreu em outras desestatizações estratégicas, a União mantém uma ação preferencial de classe especial – golden share – que lhe confere poder de veto em deliberações sobre o estatuto social da empresa.
Os investidores que apostaram na capitalização defendem que a Eletrobras, liberta de amarras que afetam tipicamente empresas estatais, deverá voltar a acompanhar a expansão do setor, que hoje empreende importantes transições e transformações energéticas. Para tanto, a empresa deverá dedicar esforço relevante para ordenar nova estratégia de negócios e rever processos decisórios internos, de modo a dinamizar a tomada de decisões e alinhar os custos operativos aos padrões de eficiência de seus concorrentes. Tudo isso sem desprezar vetores de governança e compliance amadurecidos ao longo de quase 70 anos de existência.
A Companhia deverá se tornar mais atrativa aos investidores ao adotar estratégias modernas de governança e compliance, tais como (i) a migração para o padrão de Novo Mercado da B3 - processo que não deverá ser penoso, considerando a robustez da estrutura de governança já existente; e (ii) a revisão de seu programa de compliance, para que a empresa desempenhe suas atividades de modo mais eficiente, sem deixar de lado elevados padrões de integridade e observância à legislação.
Privatização sui generis
A Lei de Privatização da Eletrobras (Lei nº 14.182/2021) previu diversos compromissos de natureza pública que devem ser cumpridos pela empresa, como o desenvolvimento de projetos voltados (i) à revitalização dos recursos hídricos das bacias do Rio São Francisco e do Rio Parnaíba, (ii) à redução estrutural de custos de geração de energia na Amazônia Legal e para navegabilidade do Rio Madeira e do Rio Tocantins e (iii) à revitalização dos recursos hídricos das bacias hidrográficas (art. 3º, V).
Tais compromissos visam utilizar a estrutura e o capital da Eletrobras para a realização de atividades de interesse público, relativamente à redução das desigualdades regionais e à preservação do meio ambiente.
Há, portanto, uma privatização sui generis. Por um lado, a Eletrobras passa a ter novo regime jurídico; já não lhe serão aplicáveis o reporte obrigatório ao Tribunal de Contas da União (“TCU”), a observância às regras da Lei de Licitações, da Lei das Estatais, ou a realização de concurso público para contratação de funcionários, por exemplo. Por outro lado, muitas das atividades exercidas pela Eletrobras têm natureza de serviço público, e o cumprimento das obrigações legais mencionadas enseja fiscalização do Estado, para além daquela exercida pela Agência Nacional de Energia Elétrica (“ANEEL ”).
Diante dessas particularidades, como tornar a Eletrobras eficiente e garantir a sustentabilidade do negócio a longo prazo?
O processo que deverá ser posto em marcha inclui a adaptação da estrutura da empresa sob os pilares de governança e compliance. Diferentemente da maioria das empresas que optam pela abertura de capital, a Eletrobras já possui estrutura robusta em termos de governança e compliance, mas necessita simplificar processos e regras não exigíveis a empresa de capital privado, no intuito de cortar custos e assegurar eficiência e celeridade.
Primeiro pilar de sustentabilidade: governança
A Eletrobras já possui estrutura de governança de sociedade anônima (e.g., com órgãos técnicos e consultivos e regulamentos internos) e se encontra no Nível 1 de listagem da B3. A Lei de Privatização escolheu submetê-la a regime mais aprofundado de mercado ao torná-la uma corporation e prever poison pills.
Especificamente, a lei limita o exercício do direito de voto de qualquer acionista ou grupo de acionistas a 10% do capital votante da Eletrobras, visando garantir a pulverização do capital social e a ausência de controlador definido.
Ademais, o Estatuto Social da companhia foi alterado para prever que (i) caso um investidor adquira mais de 30% das ações, deve realizar em até 120 dias uma oferta pública para aquisição das demais ações ordinárias por, pelo menos, o dobro do maior valor das ações na bolsa nos últimos 2 anos, atualizado pela taxa SELIC; e (ii) caso um investidor adquira mais de 50% do capital votante, deve realizar, no mesmo prazo, uma oferta pública para aquisição das demais ações pelo triplo do valor da cotação mais alta nos últimos 2 anos. Tais mecanismos visam tornar a aquisição de controle da Eletrobras excessivamente onerosa, criando desincentivo econômico à tomada de controle.
Caso um investidor ainda assim se disponha a pagar o ágio necessário por essas ações, o regulamento do Nível 1 da B3, segmento em que a Eletrobras está listada, exige que pelo menos 25% das ações da empresa se destinem à livre negociação no mercado.
Um passo adicional em direção à maior atratividade de mercado seria a migração da empresa à categoria de Novo Mercado. Além dessa estratégia estar em linha com as metas da Eletrobras publicadas na Diretriz Estratégica 2022/2026, ela teria o condão de aumentar o valor de mercado da empresa ao assegurar maior independência na tomada de decisões estratégicas, reduzindo a assimetria informacional e aumentando com isso a confiança e transparência aos investidores. . É digno de nota que a maioria das empresas atuantes no segmento de energia elétrica que compõem o Índice de Energia Elétrica1 já se encontram listadas no segmento de Novo Mercado.
Caso seja esse o caminho definido, a Eletrobras deverá atender os requisitos de migração entre o Nível 1 e o Novo Mercado referentes a alterações de cunho societário e voltados a deveres informacionais. A Eletrobras já atende à maioria dos requisitos em razão de sua estrutura de governança e programa de compliance robustos, tais como existência das funções de compliance e controles internos, regimentos de órgãos de técnicos e consultivos, políticas de indicação de membros do Conselho de Administração, de gerenciamento de riscos e de transação com partes relacionadas.
Restariam poucas, mas relevantes alterações necessárias. Por exemplo, a Eletrobras precisaria converter todas as ações preferenciais em ordinárias2, atentar aos deveres de informação em português e inglês, regras de saída do segmento caso aplicável (e.g., “realização de OPA a preço justo, com quórum de aceitação ou concordância com a saída do segmento de mais de 1/3 dos titulares das ações em circulação”) e incluir cláusula compromissória expressa em seu estatuto social referente à resolução de conflitos por meio de arbitragem perante a Câmara de Arbitragem do Mercado.
Segundo pilar de sustentabilidade: compliance
A Eletrobras possui um programa de compliance bem estruturado, que inclui políticas e código de conduta abrangentes, bem como um canal de denúncias independente. Dito isto, esse programa atende necessidades da “antiga” Eletrobras, tais como a observância a regras de auditoria e reporte ao TCU e à Controladoria Geral da União (“CGU”), normas de compras públicas e contratação de pessoal via concurso público.
O programa de compliance da nova Eletrobras deve, nesse sentido, ser revisto à luz do novo regime aplicável e de estratégias de cortes de custos personal, material, services, others - PMSO que se façam necessários para atingir benchmarks de eficiência da indústria.
Exemplos de políticas em que há espaço para simplificação e ganho de eficiência são o extenso Regulamento de Licitações e Contratos, as Diretrizes Antitruste e a Política Antitruste - que preveem regras voltadas à contratação de terceiros por meio de licitação - e as disposições de gestão de recursos humanos sobre contratação e dispensa de empregados.
Além disso, sua Política de Auditoria contempla regras voltadas a determinações expedidas pelo TCU, pela CGU e demais órgãos da Administração Pública Federal, não mais aplicáveis. Cumprirá substituí-las por boas práticas do setor privado, tais como a realização de auditorias periódicas baseadas em parâmetros determinados com diferentes níveis de aprovação de contratação de terceiros a depender da classificação de risco em questão.
De resto, algumas políticas disponíveis ao público aparentemente não foram submetidas a revisão periódica (e.g., há políticas datadas de 2014, 2017 e 2018). É boa hora para proceder à atualização que se impõe.
CONCLUSÃO
A nova realidade da Eletrobras, capitalizada e agora administrada em formato de corporation, tem tudo para permitir a retomada de seu papel de protagonista do setor elétrico, não apenas como grande operador de ativos públicos, mas como guia para as novas fronteiras energéticas. É esperada uma repaginação do plano de negócios da Companhia, a consolidação de ativos e a restruturação de parcerias e projetos de investimento. Em paralelo, a empresa deverá por em marcha a readequação de políticas e procedimentos internos que não mais fazem sentido em seu novo regime jurídico.
Limpar a casa e preparar os próximos 70 anos da empresa pode levar um tempo, mas a Eletrobras já parte de elevadas práticas de governança e compliance e possui as ferramentas necessárias para se tornar uma empresa mais eficiente, atrativa e sustentável a longo prazo, para o bem de seus acionistas e também da matriz energética brasileira.
1 Maiores informações disponíveis em: https://www.b3.com.br/pt_br/market-data-e-indices/indices/indices-de-segmentos-e-setoriais/indice-de-energia-eletrica-iee.htm
2 A existência de golden share pela União não é impeditivo para a Eletrobras migrar para o Novo Mercado (Vide Arts., 7º, 8º e 9º do Regulamento do Novo Mercado).