Voto abusivo de credor em recuperações judiciais
Os credores de uma empresa em recuperação judicial que estejam descontentes com o plano de recuperação por ela apresentado correm o risco de que seu direito de se opor ao plano sofra limitações: é possível a anulação, pelo Judiciário, do voto contrário à aprovação do plano com base no instituto do abuso de direito. O descarte desses votos considerados abusivos, por sua vez, é utilizado para permitir que o plano atinja o quórum mínimo para sua aprovação.
A Lei da Recuperação Judicial (“LRJ”) não prevê um conceito de abuso do direito de voto, nem estabelece critérios para definir se o voto do credor é legal ou ilegal. No entanto, o ordenamento jurídico brasileiro está familiarizado com o conceito mais amplo de “abuso de direito”, que é o exercício de direito de um modo que exceda os limites impostos por sua função econômica ou social ou pela boa-fé – tornando assim esse exercício um ato ilícito. E, na verdade, o abuso do direito de voto está previsto no contexto da Lei das Sociedades por Ações: os acionistas têm o dever de votar com base no interesse da empresa e seu voto será considerado abusivo se exercido exclusivamente para prejudicar ou obter vantagens pessoais à custa da empresa ou de outros acionistas.
Conforme previsto na LRJ, o processo de recuperação judicial sujeita-se ao princípio da preservação da empresa; a lei também prevê um mecanismo de cram down, que possibilita a aprovação judicial de um plano que não tenha sido devidamente aprovado por todas as quatro classes de credores, desde que certos requisitos tenham sido preenchidos. Em 2018, o Superior Tribunal de Justiça (“STJ”), deu um passo adiante e decidiu aplicar o cram down a um caso em que um dos requisitos legais não havia sido preenchido, a fim de evitar suposto “abuso” por parte de credores dissidentes. Em outras palavras, o STJ concluiu que a aplicação literal dos requisitos legais do cram down não estaria alinhada com o princípio da preservação da empresa.
Esse precedente não abordou se o Judiciário pode efetivamente anular votos contrários ao plano de recuperação com base no abuso de direito de voto, e em quais circunstâncias isso estaria autorizado – de fato, tal questão ainda está pendente de julgamento no STJ. Trata-se, no entanto, da primeira vez que o STJ recorreu ao conceito de abuso de direito no contexto da assembleia de credores para votação do plano. A decisão, ao mitigar a aplicação dos requisitos legais do cram down, parece ser uma pista de que o STJ se sentirá confortável para confirmar decisões que tenham excluído da contagem votos contrários ao plano de recuperação.
No entanto, essa visão favorável ao devedor deveria ser a exceção e não a regra. O voto de um credor e o de um acionista não são a mesma coisa: este é vinculado e motivado pelo propósito societário da companhia, ao passo que aquele não é. O acionista voluntariamente aceitou deter participação societária na empresa e tem o dever legal de priorizar os interesses dela sobre os seus próprios. O credor, por sua vez, participa da assembleia de credores exclusivamente para poder se expressar sobre o pagamento de seu crédito, sendo que a LRJ não o obriga a necessariamente priorizar os interesses do devedor ao votar o plano.
Ao analisar a questão, há que se observar e respeitar três importantes princípios: a segurança jurídica, o melhor interesse dos credores e a proteção do mercado. Quando juízes se veem premidos a desconsiderar o voto de credores racionais e relevantes para poder viabilizar a aprovação do plano, acabam gerando um cenário de incerteza, que cria incentivos para empresas ineficientes – empresas que apenas estão adiando sua inevitável falência e se endividando ainda mais nesse ínterim ou que só são capazes de sobreviver sacrificando seus maiores – e, consequentemente, mais expostos –, credores, contra a vontade deles.
Os tribunais não deveriam reconhecer abuso de direito se o credor, minoritário ou não, legitimamente entender que a empresa em recuperação judicial é financeiramente inviável e/ou discordar dos termos e condições previstos no plano. Em regra, os credores têm o direito de se opor ao plano, e isso não apenas por força da função social do mercado de crédito – os débitos devem ser pagos para que os credores possam continuar a emprestar –, mas também do direito constitucional de propriedade. Os credores não devem ser impedidos de se opor a um plano se este, objetivamente, se mostrar uma alterativa pior para a satisfação de seu crédito do que a falência do devedor.
Credores cujos votos tenham sido desconsiderados pelo juiz podem recorrer da decisão. A fim de preservar seus direitos e melhorar suas chances no processo judicial, devem, todavia, agir muito antes disso. Primeiro, devem apresentar em juízo suas objeções ao plano assim que ele for submetido, de modo a preparar o terreno para um futuro voto contrário. Segundo, na assembleia de credores, mais do que simplesmente votar “não”, devem fazer declaração de voto por escrito contendo robusta motivação econômica e jurídica, e solicitar que tal declaração seja anexada à ata da assembleia.
O único interesse verdadeiro de um credor racional forçado a participar de processo de insolvência é otimizar o recebimento de seu crédito e na maior extensão possível. Privar credores racionais da capacidade de se opor a um plano ruim transmite mensagem errada ao mercado e, no limite, pode acabar piorando o cenário econômico brasileiro, ao tornar o crédito corporativo mais caro e permitir a sobrevivência de empresas inviáveis – enquanto empresas financeiramente saudáveis pagam essa conta.