O direito à informação e à liberdade de expressão, dois dos mais importantes princípios da democracia, ainda estão sendo desenvolvidos por tribunais em todo o mundo. A Suprema Corte Americana definiu os limites desses direitos em 1971 ao decidir o histórico caso dos Papéis do Pentágono (New York Times Co. x Estados Unidos). Quase 50 anos depois, chegou a vez do Brasil.
O Supremo Tribunal Federal (STF) terá oportunidade única para ratificar a importância desses princípios constitucionais e definir seus limites.
Apelidado de “Vaza Jato”, o caso a ser julgado trata do vazamento de conversas pelo Telegram entre funcionários públicos, incluindo o atual ministro da justiça, Sergio Moro, ex-juiz responsável pelos processos da operação “Lava Jato”, que tratam do maior escândalo de corrupção brasileiro.
O conteúdo das conversas foi revelado pelo jornalista Glenn Greenwald no site do “The Intercept” e em outras mídias tradicionais. O material, recebido pelo jornalista de um hacker que interceptou os funcionários públicos envolvidos, revela os bastidores da relação entre Moro (então na função de juiz) e promotores do caso, bem como entre estes e agentes da Polícia Federal. As mensagens sugerem que essas três entidades não teriam agido de forma independente em alguns casos da Lava Jato, o que é sem dúvida questão de interesse público.
O episódio desencadeou investigação criminal para identificar os hackers e levantou debate sobre a legalidade do "sigilo da fonte" para proteger informações coletadas por meios ilícitos.
Tendo provas de que Greenwald havia sido incluído na investigação, a Rede Sustentabilidade ajuizou ação no Supremo Tribunal Federal, com pedido de liminar para interromper qualquer iniciativa administrativa com o propósito de investigar o jornalista. No mérito, o partido pede que a investigação sobre o jornalista seja declarada inconstitucional.
A liminar foi concedida em agosto passado e o caso aguarda julgamento de mérito.
A extrema polarização política da população brasileira dificulta a avaliação adequada deste importantíssimo assunto.
Não está em discussão o apoio à esquerda ou à direita, mas sim a defesa da Constituição e da democracia brasileira.
A Constituição brasileira trata dos direitos fundamentais em diversos dispositivos que devem ser interpretados em conjunto. Os artigos que tratam da liberdade de expressão, liberdade de imprensa e direito à informação fazem referência explícita ao sigilo da fonte. Esses direitos também estão consagrados em convenções internacionais das quais o Brasil faz parte, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Convenção Americana de Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San José.
A novidade no caso da Vaza Jato é que o conteúdo divulgado foi hackeado.
Isso afeta a possibilidade ou mesmo o dever do jornalista de informar? Essa questão também foi analisada no caso do Pentágono. Entretanto, a semelhança entre os casos vai além, pois ambos tratam de informações confidenciais relativas ao governo (e no caso brasileiro, também relativas a juiz e promotores).
O Ministro que concedeu a liminar deixou claro que “a atuação do jornalista Glenn Greenwald na divulgação recente de conversas e de trocas de informação entre agentes públicos atuantes na chamada Operação Lava-Jato é digna de proteção constitucional, independentemente do seu conteúdo ou do seu impacto sobre interesses governamentais. A despeito das especulações sobre a forma de obtenção do material divulgado pelo jornalista [...] a liberdade de expressão e de imprensa não pode ser vilipendiada por atos investigativos dirigidos ao jornalista no exercício regular da sua profissão. [...] As discussões tratadas nesses precedentes [...] evidenciam a necessidade de o STF estabelecer parâmetros e diretrizes interpretativos-constitucionais com eficácia erga omnes”.
Embora a informação tenha sido publicada também na mídia tradicional, argumentou-se que as garantias constitucionais aqui mencionadas deveriam ser aplicadas apenas à “imprensa” (como se esse fosse um conceito inequívoco) e não a sites como “The Intercept”. Sendo assim, a ação do jornalista não estaria protegida pela Constituição.
Este ponto de vista não se sustenta. A Constituição não restringe garantias a plataformas ou tecnologias específicas, pois o bem protegido é o interesse público. Além disso, há anos o Supremo Tribunal Federal dispensou a obrigatoriedade de diploma de jornalismo para exercício da profissão no Brasil, em julgamento histórico baseado no princípio da liberdade de expressão. Em outras palavras, a proteção constitucional estende-se a qualquer pessoa, o que obviamente inclui jornalistas profissionais.
Disso não decorre que o manto da liberdade de expressão isenta indivíduos ou veículos de comunicação de qualquer responsabilidade. Como regra geral, todos são obrigados a reparar danos causados a terceiros. Indivíduos podem ainda ser responsabilizados criminalmente por calúnia, difamação ou injúria ou pela participação em ato criminoso para obtenção de informações, como invasão de comunicação alheia.
O exercício do jornalismo também está sujeito a certos padrões: (i) a matéria deve ser baseada em pesquisa diligente; (ii) o objetivo da publicação deve ser o de informar; (iii) as informações e documentos devem ser publicados na íntegra, sempre que possível e seguro; e (iv) o mais importante de todos, deve haver interesse público na divulgação dos fatos. Matérias que envolvam agentes públicos geralmente são de interesse público.
Espera-se que ao analisar o mérito do caso “Vaza Jato”, o Supremo Tribunal Federal volte a reafirmar a força da democracia brasileira, confirmando a liminar e impedindo ações ilegais de órgãos ou agentes públicos com o objetivo de revelar a fonte das informações.
Como destacou o juiz Hugo Black em seu voto no caso dos Papéis do Pentágono, “a imprensa deveria servir aos governados, não aos governantes” e “apenas uma imprensa livre e irrestrita pode efetivamente trazer à luz maus feitos do governo”.