Sancionada lei sobre processo administrativo no sistema financeiro
No dia 13 de novembro, a Presidência da República aprovou a Lei nº 13.506, que trata do processo administrativo sancionador nas esferas de atuação do Banco Central (BC) e da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). A lei substitui a Medida Provisória nº 784, de 7 de junho de 2017, que perdeu eficácia por não ter sido votada dentro do prazo constitucional.
No âmbito do Banco Central, objeto deste texto, a nova lei impacta todas as instituições sob a supervisão dessa autoridade, como bancos, integrantes do Sistema de Pagamentos e consórcios. Também alcança as pessoas físicas ou jurídicas que praticam atividades sob a supervisão ou vigilância do BC, prestam determinados serviços de auditoria a tais instituições ou têm nelas cargos de gestão.
Infrações
Se comparada à Lei nº 4.595, de 31 de dezembro de 1964 (que disciplina o Sistema Financeiro Nacional – SFN)1, a nova norma ampliou o rol de infrações administrativas a que estão sujeitos os regulados. A lista é extensa e inclui o não fornecimento de informações exigidas por lei ou regulamentos ao BC (como declarações de capitais no exterior), a realização de operações vedadas ou em desacordo com autorização do BC e o exercício de cargos de administração ou em órgão estatutário sem aprovação do Banco Central.
Entre as operações vedadas às instituições financeiras estão: (i) emissão de debêntures e partes beneficiárias; e (ii) aquisição de imóveis não destinados ao uso próprio, exceto os recebidos em liquidação de empréstimos de difícil ou duvidosa solução ou ainda quando expressamente autorizado pelo BC, observada norma a ser editada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN).
A restrição à emissão de debêntures já constava na Lei nº 4.595/64 e impede um descasamento no fluxo de caixa, capaz de afetar a liquidez da instituição emissora. Já as normas para a aquisição de imóveis não destinados ao uso próprio sofreram alteração.
Sob o regime anterior, imóveis recebidos como quitação de dívidas tinham que ser vendidos em até um ano, prorrogável até duas vezes a critério do BC. Com isso, esses imóveis muitas vezes eram vendidos em condições muito desvantajosas para os bancos, que deviam se desfazer dos ativos dentro do prazo legal a todo custo. Com a nova lei, abre-se oportunidade para o CMN determinar critérios mais flexíveis de venda, levando em conta circunstâncias urgentes, como crises no mercado imobiliário. Estes novos critérios seriam aplicados pelo Banco Central aos casos concretos.
Penalidades
A Lei nº 13.506/17 permite a imposição das seguintes penalidades, de forma isolada ou cumulativa: (i) admoestação pública (que consiste na publicação da condenação, incluindo nome do apenado e o ilícito praticado); (ii) multa; (iii) proibição de prestar determinados serviços e de praticar certas atividades ou operações por um período máximo de vinte anos; (iv) inabilitação para exercer cargos que dependam da autorização do BC por um máximo de vinte anos; e (v) cassação de autorização para funcionamento. As penalidades “iii” a “v” só serão aplicáveis em caso de ocorrência de infrações graves2.
Até então sujeitas ao teto de R$ 250 mil – ou, no caso de infrações cambiais, 300% da operação –, as multas poderão alcançar até R$ 2 bilhões ou 0,5% da receita de serviços e produtos financeiros apurada no ano anterior ao da infração, de ambos o maior. Multas superiores a R$ 50 milhões serão submetidas a reexame por órgão colegiado do BC3. Em caso de falência, liquidação extrajudicial ou outras formas de concurso de credores do condenado, os créditos das multas serão subordinados.
O BC também poderá arbitrar multa diária em caso de descumprimento de medidas coercitivas ou acautelatórias de até R$ 100 mil ou um milésimo da receita de serviços e de produtos financeiros da entidade violadora no ano anterior ao da infração, dos dois valores o maior.
A aplicação do novo patamar de multas só é válida para ilícitos cometidos após a entrada em vigor da Lei nº 13.506/17, dia 14 de novembro de 2017. Ilícitos anteriores não podem ser penalizados com as novas multas, porque a regra nova só pode se aplicar a infrações posteriores à sua criação.
Acordos com o BC
Uma das mudanças mais noticiadas tanto da Medida Provisória nº 784/17 como da Lei nº 13.506/17 é a introdução de acordos de leniência e de termos de compromisso com o BC, com o objetivo de evitar os impactos negativos de investigações e obter a redução ou extinção de penalidades4.
Nos casos que não envolvam suposta infração grave, o administrado poderá firmar termo de compromisso com o BC, que deixará de instaurar processo administrativo ou suspenderá o processo já instaurado. O investigado que assinar termo de compromisso obriga-se a: (i) cessar a prática sob investigação ou seus efeitos lesivos; (ii) corrigir as irregularidades apontadas e indenizar os prejuízos; e (iii) cumprir as demais condições que forem acordadas no caso concreto, com imposição obrigatória de contribuição pecuniária.
Outra forma de afastar eventuais punições é a assinatura de “acordo administrativo em processo de supervisão”, forma como o acordo de leniência foi denominado na lei, e que reforça a limitação de sua abrangência ao processo administrativo sancionador. O BC poderá celebrar esse acordo com pessoas físicas ou jurídicas que confessarem a prática de infrações administrativas (graves ou não) de competência da autarquia. O acordo resultará na extinção da ação administrativa contra aquele que o firmou, ou na redução de um a dois terços da penalidade aplicável.
Os termos de compromisso e acordos administrativos devem ser abertos às infrações anteriores à publicação da Lei nº 13.506/17. Isso por se tratar de regra processual, com aplicabilidade imediata aos processos em curso, e mais benéfica ao administrado.
Entre uma série de críticas que se pode fazer aos acordos trazidos pela Lei nº 13.506/17, uma merece especial atenção: a falta de segurança ao proponente em razão da limitação dos benefícios à esfera administrativa.
Com base em dispositivo da Lei do Sigilo Bancário (Lei Complementar nº 105, de 10 de janeiro de 2001), a Lei nº 13.506/17 exige que indícios de crimes percebidos pelo BC sejam comunicados ao Ministério Público e aos órgãos públicos competentes tão logo recebida a proposta de acordo administrativo em processo de supervisão. Assim, caso uma mesma conduta configure a um só tempo ilícito administrativo e crime, o administrado estará obrigado a conduzir negociações com o Ministério Público antes ou simultaneamente àquelas com o BC.
Caso contrário, ficará exposto no campo criminal justamente por ter cooperado com a autoridade regulatória.
A comunicação do BC ao Ministério Público ajuda a impedir que crimes passem despercebidos. O problema é que nem sempre é possível negociar acordos com o Ministério Público, porque a colaboração premiada é restrita a organizações criminosas e a outros casos dificilmente aplicáveis (como o tráfico de drogas). Em caso de condutas praticadas por um só agente, sem organização criminosa, como muitas vezes ocorre na matéria financeira, o administrado que reportar uma prática ao BC em busca de um acordo ficará exposto no campo penal mesmo que nem chegue a concluir o acordo com o BC. Ainda que consiga finalizar e firmar o pacto com o BC, o processo penal decorrente da comunicação ao Ministério Público poderá eliminar os benefícios obtidos na esfera administrativa.
Seria melhor se, além de envolver as autoridades criminais nas negociações, a nova lei também estendesse os benefícios dos acordos concluídos ao campo penal. Essa solução, além de favorecer a interação entre órgão administrativo e criminal, também oferece maior segurança ao proponente.
Questões processuais
Um avanço da Lei nº 13.506/17 está na possibilidade de o BC deixar de instaurar processo administrativo quando julgar que a conduta não resulta em lesão significativa. Isso favorece a agilidade ao concentrar esforços e recursos públicos em processos com maior impacto sobre os mercados e a sociedade.
Por um lado, a nova lei determina que os recursos contra condenações do BC poderão impedir a aplicabilidade imediata das penas, o chamado efeito suspensivo. Por outro, no caso de sanções mais graves (proibição para realizar certas atividades ou operações, inabilitação ou cassação da autorização para funcionar), a regra é que o recurso não terá efeito suspensivo, a menos que isso seja solicitado pelo apenado. Mesmo assim, o pedido de efeito suspensivo deverá ser feito à própria autoridade que emitiu a decisão recorrida, o que diminui significativamente a chance de êxito.
Isso requer cuidado redobrado do BC, já que sanções aplicadas em primeira instância podem prejudicar a continuidade das empresas. Por exemplo, o administrado que conseguir reverter uma pena de cassação de autorização para funcionamento de uma sociedade em segunda instância não terá muito a comemorar se não tiver obtido efeito suspensivo da decisão de primeiro grau. Afinal, àquela altura, a empresa não estará mais operando.
Outros temas
Compensação privada de créditos: a Lei nº 13.506/17 também alterou diversas normas relativas ao SFN. Entre elas, a que diz respeito à compensação privada de créditos, que é a quitação de créditos e débitos entre residentes no exterior e residentes no Brasil, sem movimentação cambial5.
A compensação privada de créditos é vedada. Essa proibição é resquício do controle cambial rígido da Era Vargas e permanece até hoje, representando custos de transação principalmente para exportadores. Mesmo assim, ao invés de apenas exigir o registro dessas operações, de modo a garantir o controle do BC sobre a entrada e saída de divisas (como nos parece mais recomendável), a Lei nº 13.506/17 manteve a vedação à compensação. Deve-se admitir, no entanto, que a nova norma representa algum avanço, uma vez que abre exceções e permite a compensação privada em situações expressamente previstas em regulamento a ser emitido pela autoridade monetária.
Se a compensação privada de créditos era punida com multa de até o dobro do valor da operação, a partir de agora, quando conduzida em desacordo com regulamento a ser emitido, sujeitará os responsáveis às penalidades da Lei nº 13.506/17.
Uniformização de penas: a Lei nº 13.506/17 procurou uniformizar as sanções aplicáveis às pessoas e atividades reguladas pelo BC. Diversas condutas ficarão sujeitas às penas da nova norma, dentre as quais: (i) o não fornecimento ou o fornecimento fora das condições legais e regulamentares de informações exigidas pelo BC relativas a capitais brasileiros no exterior; (ii) as infrações às normas que regulam os registros no BC de capital estrangeiro em moeda nacional; (iii) as infrações às normas legais e regulamentares que disciplinam o Sistema de Consórcios; e (iv) a deficiência na aplicação de recursos em operações de crédito rural.
Operações de crédito vedadas: a Lei nº 13.506/17 alterou os artigos 34 da Lei nº 4.595/64 e 17 da Lei nº 7.492, de 16 de junho de 1986, que disciplinam os empréstimos e aditamentos vedados às instituições financeiras no campo administrativo e criminal, respectivamente.
O novo texto do artigo 34 veda “operação de crédito” com “parte relacionada”. A definição do termo operação de crédito ficará a cargo de regulação a ser emitida pelo CMN. Como se vê, a Lei nº 13.506/17 deu grande espaço para a regulamentação da autoridade monetária e, por isso, é preciso estar atento às normas regulatórias emitidas, que delimitarão temas importantes da matéria financeira.
Já a definição de “parte relacionada” encontra-se na própria Lei nº 13.506/17 e, vale destacar, não inclui as sociedades sob controle comum (“irmãs”). Mesmo assim, a operação entre essas sociedades pode ser vedada em certas hipóteses, como nos casos em que houver diretor ou membro de conselho de administração em comum.
Por fim, a Lei nº 13.506/17 abriu exceções à vedação de operações de crédito entre partes relacionadas. Certas operações, como aquelas realizadas em condições compatíveis com as de mercado e aquelas autorizadas pelo CMN, passarão a ser aceitas.
1 A Lei nº 4.595/64 continua vigente, exceto pelos seus artigos expressamente revogados pela Lei nº 13.506/17.
2 As infrações graves foram definidas pela própria Lei nº 13.506/17 e incluem, por exemplo, aquelas que contribuam ou possam contribuir para a indisciplina no mercado financeiro ou possam afetar a estabilidade ou funcionamento regular do SFN, Sistema de Consórcios, Sistema de Pagamentos Brasileiro ou do mercado de capitais.
3 A gradação das penalidades de multa, de inabilitação e de proibição de prestar serviços ou realizar certas atividades ficará a cargo do BC. Nesse sentido, destaca-se a Circular BC nº 3.857, emitida no mesmo dia da publicação da Lei nº 13.506/17 para regulamentar os acordos com o BC e outras questões do processo administrativo sancionador, como as penalidades aplicáveis.
4 https://jota.info/colunas/coluna-do-levy-salomao/acordos-de-leniencia-e-termos-de-compromisso-com-o-bc-29062017
5 Assim, por exemplo, se um exportador de produtos tem contra a mesma contraparte créditos de exportação a receber e dívidas de uma importação de máquinas utilizadas na produção, é preciso formalizar operações de câmbio para a entrada e saída de capital, com participação de intermediário autorizado a operar no mercado de câmbio.