A Lei 13.303, de 30 de junho de 2016 (Lei das Estatais), é uma das respostas institucionais ao cenário de tragédia para o qual foram arrastadas as empresas estatais brasileiras. A combinação de investimentos decididos na base de critérios políticos questionáveis com corrupção sistêmica colocou tais empresas, centrais à economia brasileira, em situação de insolvência e incapacidade de realizar seus objetivos. A nova legislação supostamente pretendeu criar mecanismos que pudessem prevenir a repetição desses fatos.
Apesar de extensa, a Lei das Estatais em grande medida apenas sistematiza normas que já existiam e consolida entendimentos doutrinários e jurisprudenciais já adotados na prática. É marcada, ainda, pela afirmação genérica de princípios e generalidades que pouco efeito prático terá no curto prazo – quando muito, servirá de baliza à evolução da jurisprudência dos tribunais, com resultados incertos. Há, também, trechos confusos e com redação que denota pouco apuro técnico – como o tratamento das sanções administrativas que, em termos concretos, acabou por afastar a possibilidade de aplicação da sanção de inidoneidade no âmbito das licitações e contratos das estatais.
Os pontos mais relevantes e que representam inovação giram em torno de três grandes temas: (i) regras específicas de transparência e controle interno de riscos e integridade, com previsão da criação de comitês de auditoria independente (artigos 8º, 9º, 10 e 24); (ii) requisitos para nomeação de membro do conselho de administração ou diretoria (artigo 17, § 1º) e restrições a quem pode desempenhar essas funções (artigo 17, § 2º); e (iii) regras específicas de licitação, com procedimentos diversos daqueles previstos na Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, mas sem a ampla flexibilização que existe no regulamento de licitação específico da Petrobras.
Os requisitos aplicáveis aos administradores ganharam repercussão na mídia. Mas, dentre as normas acima, são as menos relevantes. São muito baixos os limiares e exigências estabelecidos. Ademais, o atendimento de todos eles – ou mesmo de requisitos mais exigentes – não representa garantia alguma de competência e caráter. Boa parte dos administradores de estatais diretamente envolvidos nos escândalos recentes atenderia com facilidade tais requisitos. As novas regras sobre licitações terão repercussão por atualizarem, no âmbito das estatais, o regime geral da Lei 8.666/93. Mas não são inovações no regime de licitações que permitirão, de fato, reduzir os riscos associados à corrupção.
Já as regras de transparência e controle interno podem ser fator importante na criação de estruturas internas aptas a detectar ilícitos. Por outro lado, é possível atender à letra da lei sem alcançar a eficácia esperada. Muitas estatais já têm, no papel ao menos, o que está previsto na Lei. Controles internos de riscos e integridade são, por óbvio, mais do que declarações de princípio e códigos diversos. Pressupõem a adoção de mecanismos e procedimentos de monitoramento permanente de riscos, canais de denúncias e investigações independentes. Isso não acontece de forma materialmente relevante sem que as lideranças no âmbito das empresas estejam comprometidas e garantam o funcionamento dos respectivos mecanismos e procedimentos. Não é possível, por razões óbvias, presumir que isso acontecerá.
Instituições devem ser desenhadas considerando a construção de incentivos para que as pessoas atuem da maneira desejada – e não baseadas na presunção de que as pessoas agirão de forma correta. Essa percepção falta em grande medida à Lei das Estatais. Ao conjunto de exigências criadas, que podem acabar por apenas elevar o custo da burocracia interna sem benefícios reais, é necessário adicionar incentivos aptos a limitar a atuação das lideranças das empresas no seu exclusivo interesse particular ou de seu grupo político. Para isso, o risco de detecção de comportamentos ilícitos precisa ser ampliado, para além de programas de integridade cuja eficácia depende em grande medida do comprometimento e postura de integrantes da própria organização que deve ser controlada.
Os programas de leniência e delação premiada já previstos na legislação ampliam esse risco, mas de forma limitada – pois pressupõem a eficácia das autoridades de controle – e não com a mesma amplitude que se verifica no combate a cartéis, origem desses instrumentos em nosso país. No caso dos cartéis, o efeito desestabilizador dos programas de leniência tende a ser maior que no âmbito da corrupção, pois a decisão de desrespeitar as regras do cartel e colaborar com a autoridade tende a trazer benefícios para a empresa que vão além da mitigação das penalidades.
Os participantes de um cartel têm incentivos a desviarem-se do comportamento combinado com seus concorrentes, pois isso pode permitir maiores vendas e ganhos de participação no mercado. O que impede a instabilidade do cartel em decorrência desses incentivos é a possibilidade de os participantes punirem aquele que adota o comportamento desviante. Mas se este opta por delatar o cartel haverá a interrupção da conduta, o que impede retaliações. A mesma dinâmica e estrutura de incentivo não se verifica necessariamente nos casos de corrupção, o que reduz o efeito dissuasório de programas de leniência. Não há ganho evidente associado à delação dos copartícipes no caso de corrupção, distinto da mitigação de sanções.
Uma forma de elevar o risco de detecção é considerar os incentivos para denunciar o ilícito por parte de pessoas que têm ou possam ter conhecimento da conduta, mas que dela não participam. Empregados de empresas estatais ou fornecedores destas podem ter conhecimento do ilícito, mas não têm poder de decisão para impedi-los e não têm incentivos adicionais a denunciá-los, a não ser o seu senso ético e espirito cívico, cujo grau varia em cada indivíduo e pode não ser suficiente para levá-lo a agir ao considerar os riscos que corre – de perder seu cargo ou contrato, ser visto como traidor, ser acusado de calúnia pelos denunciados ou de partícipe pelas autoridades. Os incentivos para enfrentar esses riscos precisam ser ampliados.
Para tanto, é necessário instituir proteção legal que minimize os riscos de retaliação e, também, garanta a premiação daqueles que assumem tais riscos para denunciar ilícitos. Assim como o participante da conduta que delata é premiado com mitigação das sanções, aquele que não participa, mas corre riscos para denunciá-la, também deve ser premiado. Essa premiação pode ser representada por parcela das sanções que vierem a ser aplicadas pela autoridade. Ao tornar todos na estrutura da empresa fiscais em potencial da ética, elevam-se os riscos de detecção de condutas ilícitas e o ambiente de incerteza para o administrador de má-fé, possivelmente a ponto de conter os incentivos que conduzem à prática do ilícito. O inconveniente da premiação, o estímulo ao denuncismo vazio, precisaria ser eliminado. Isso pode ser feito através de regra rigorosa impedindo que, sem evidências externas concretas, eventualmente listadas na lei, possa haver condenação criminal ou cível.
A Lei das Estatais pode ser compreendida como uma tentativa de experimentação institucional em resposta a problemas difíceis de resolver em nossa sociedade. Ainda que seja louvável a iniciativa, é insuficiente e trouxe pouca ousadia em termos de ideias novas.