Esta história já foi contada antes: um devedor qualquer ajuíza pedido de recuperação judicial; um credor contata seu advogado pedindo aconselhamento; o advogado fala sobre a Lei da Recuperação Judicial, mas faz uma pausa e depois uma ressalva: “Note, porém, que os tribunais...”
O Judiciário vem repetidamente entendendo que princípios gerais presentes na LRJ prevalecem sobre dispositivos expressos e concretos nela contidos – quase que invariavelmente em detrimento dos credores. Exemplos dessa postura são abundantes. Para citar alguns poucos:
a) Prazo de suspensão (stay period): pela LRJ, “em hipótese nenhuma” a proteção do devedor contra ações e execuções de credores excederá o “prazo improrrogável” de 180 dias, mas é pacífico hoje nos tribunais o entendimento de que esse prazo pode sim ser prorrogado, com base em uma interpretação de outras disposições acerca de prazos da LRJ e no intuito de preservação da empresa até que seu plano de recuperação possa ser votado;
b) Créditos em moeda estrangeira: a LRJ estabelece que a prefixação de uma taxa de câmbio aplicável ao pagamentos futuros de créditos em moeda estrangeira só poderá ser oposta àquele credor que “aprovar expressamente” essa cláusula do plano – e, não obstante, alguns tribunais de segunda instância julgaram que o plano aprovado vincula os detentores de crédito em moeda estrangeira independentemente do seu consentimento;
c) Garantia real: de acordo com a LRJ, o plano de recuperação judicial não pode suprimir garantia real sobre um ativo nem substituir o ativo gravado a não ser “mediante aprovação expressa do credor titular da respectiva garantia”. No entanto, em abril de 2019 o Superior Tribunal de Justiça decidiu que o plano aprovado pela maioria dos credores pode privar o credor de sua garantia real contra sua vontade;
d) Bens essenciais: em linha com tratados internacionais, a LRJ excepciona aeronaves arrendadas da regra geral que permite ao devedor manter a posse de ativos essenciais a suas atividades durante o stay period. Porém, o juízo de primeira instância da recuperação da Avianca Brasil desconsiderou essa exceção e proibiu que os arrendadores retomassem os bens de sua propriedade (o lado positivo é que seus recursos foram acolhidos em abril de 2019).
Diferentemente de outros precedentes importantes sobre assuntos como consolidação substancial, abuso do direito de voto em assembleia de credores ou tratamento dos créditos decorrentes de bonds – cada um dos quais é tema não disciplinado pela LRJ –, em nenhum dos quatro exemplos mais acima existe alguma lacuna ou ambiguidade na LRJ. Pelo contrário, deparando-se com uma regra legal expressa, os tribunais intencionalmente as desconsideraram recorrendo para isso a princípios legais e a interpretação.
Essa postura do Judiciário é questionável tanto do ponto de vista jurídico quanto de mercado.
Em termos jurídicos, a LRJ é uma e a mesma lei. Seus princípios amplos e suas regras expressas coexistem e não estão em conflito – os princípios serão aplicáveis quando ausente disposição clara. E mesmo que algum conflito existisse, a especificidade de uma regra expressa, aplicável a um caso concreto, deveria prevalecer sobre o caráter aberto de um princípio. Posto de modo mais simples, o voto majoritário e a preservação da empresa permeiam a LRJ, mas estão sujeitos às limitações e às exceções estabelecidas pela própria LRJ.
Sob a perspectiva do mercado, os tribunais estão criando insegurança jurídica e tornando o crédito mais caro. Quando investidores são surpreendidos por um precedente que denega regra clara pró-credor, podem decidir elevar as taxas de juros cobradas ou exigir garantias adicionais dos futuros tomadores. Receando que os tribunais busquem ativamente proteger um devedor caso ele peça recuperação judicial, os credores – como agentes econômicos racionais – possivelmente ajustarão suas políticas comerciais em conformidade.
Portanto, toda vez que o Judiciário relativiza disposições legais ou prioriza princípios pró-devedor frente a regras pró-credor, ele pode estar ajudando a salvar aquele devedor específico e a preservar os respectivos empregos – mas, no final, está fazendo isso às custas do próximo tomador de crédito da fila.
Apesar do viés pró-devedor de alguns tribunais, os credores podem encontrar maneiras de proteger melhor seus interesses. Devem acompanhar a jurisprudência recente, para que ao celebrar cada novo contrato possam avaliar adequadamente os riscos num cenário de insolvência da contraparte. Isso pode levar o credor a pressionar por proteções contratuais de vários tipos, tais como: obrigação de cumprir parâmetros financeiros (financial covenants); garantias prestadas por terceiros; cláusulas de vencimento antecipado; vendas com reserva de domínio; declarações e garantias apropriadas ao caso concreto (p.ex., um devedor oferece bem em garantia e declara ao credor que tal bem não é essencial para as suas atividades); e outros mecanismos, conforme o caso.
Surgindo disputa contra devedor insolvente, além da usual argumentação jurídica, os credores devem considerar o uso de argumentos relacionados aos riscos sistêmicos como os apontados acima. Isso porque o Judiciário pode ocasionalmente ver a árvore e perder de vista a floresta, i.e., prestar atenção somente ao aspecto particular (o caso concreto, interpretação legal) e não ao geral (o mercado de créditos como um todo, impactos diretos dos precedentes jurisprudenciais sobre a economia).
Finalmente, medidas também podem ser tomadas no âmbito legislativo. Atualmente, diversos projetos de lei tramitam no Congresso com o intuito de modificar a LRJ em diversos aspectos, e uma postura ativa pode se mostrar cabível a depender da magnitude dos interesses envolvidos.