Gun jumping: Lições extraídas das decisões do Cade

A lei antitruste brasileira (Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 2011), em vigor desde 29 de maio de 2012, alinhou as regras brasileiras de controle de estruturas às melhores práticas internacionais ao instituir o sistema de notificação prévia dos atos de concentração. Nesse regime, operações que preenchem os critérios obrigatórios de notificação não podem ser consumadas antes da aprovação do órgão antitruste, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica, Cade.

A consumação de operações antes de sua apreciação pelo Cade, conhecida pela expressão gun jumping, sujeita as partes a multas que variam de R$ 60 mil a R$ 60 milhões, bem como a declaração de nulidade dos atos praticados e abertura de processo administrativo para apurar configuração de infração à ordem econômica. O Regimento Interno do órgão determina que “[a]s partes deverão manter as estruturas físicas e as condições competitivas inalteradas até a apreciação final do Cade, sendo vedadas, inclusive, quaisquer transferências de ativos e qualquer tipo de influência de uma parte sobre a outra, bem como a troca de informações concorrencialmente sensíveis que não seja estritamente necessária para a celebração do instrumento formal que vincule as partes.” Por sua vez, a Resolução nº 13/2015 estabelece o tratamento processual a ser dado para as investigações de gun jumping, com destaque para o sobrestamento da análise do mérito do caso até a resolução do incidente. Por fim, em maio de 2015, o órgão editou guia não vinculante que detalha sua interpretação quanto a (i) definição de gun jumping e quais atividades podem levar à sua caracterização; (ii) procedimentos específicos para minimizar os riscos de sua ocorrência; e (iii) sanções aplicáveis.

Desde o primeiro julgamento pelo Cade de um caso de gun jumping, em agosto de 2013, o órgão julgou outros doze processos, em nove dos quais se constatou a ocorrência do ilícito. As multas aplicadas variaram de R$ 60 mil a R$ 30 milhões, abrangendo setores tão diversos quanto fabricação de automóveis, exploração de petróleo e comercialização de vegetais em conserva.

A seguir, examinamos os principais aspectos de tais decisões.

Soluções negociadas. Sete dos nove casos em que a prática de gun jumping restou configurada foram resolvidos por meio da celebração de Acordo em Controle de Concentrações (“ACC”), com o pagamento de contribuições pecuniárias revertidas para o Fundo de Defesa dos Direitos Difusos. Nesses casos, o Tribunal do Cade tem exigido, além do pagamento de valores, compromissos outros para além daquelas sanções estabelecidas na lei. Por exemplo, no caso Goiás Verde/Brasfrigo, apreciado pelo Tribunal em 22 de abril de 2015, foi acordado que o comprador não faria uso de uma determinada marca (Jurema) e não criaria nova marca nos mercados de milho em conserva, ervilha em conserva e seleta de legumes por dois anos, equivalentes ao período em que as partes haviam consumado a operação sem o aval do órgão antitruste. O compromisso foi exigido apesar de a operação não suscitar preocupações concorrenciais, tendo em vista o objetivo de dissuadir a prática da consumação prévia.

Previsão contratual de aprovação do Cade como condição suspensiva. Em alguns casos (OGX/Petrobras, UTC/Aurizônia e UTC/Potióleo), o Cade considerou a ausência de cláusula contratual suspensiva com relação à aprovação da operação pelo órgão como indicativo de gun jumping.

Cálculo da multa ou contribuição pecuniária. O guia do Cade indica que o órgão deve levar em consideração ao estabelecer os valores devidos: (i) a situação da operação (mormente se a notificação foi voluntária ou não e se, quando da notificação, a operação já havia sido consumada ou não), (ii) a natureza da decisão do Cade (reprovação, aprovação com restrições ou aprovação sem restrições), (iii) o tempo transcorrido desde a consumação da operação; e (iv) o porte econômico do infrator. O guia não indica qual peso atribuir a cada um desses fatores e, na prática, o Cade tem considerado o valor da operação como critério de dosimetria em casos de fusões e aquisições. Em Blue Cycle/Shimano, apreciado em 17 de agosto de 2016, o órgão indicou que o capital social e o faturamento da joint venture (que, nesse caso, já era operacional) seriam substitutos para o valor da operação para fins de cálculo do valor devido. Na mesma sessão, em JBS/Tramonto, que envolvia a não notificação de um contrato de locação, o Tribunal do Cade tomou por base de cálculo o valor da operação, sobre a qual se aplicou alíquota não divulgada, a qual foi acrescido 1% por ano decorrido sem notificação. O valor total recebido pelo CADE em razão do ilícito de gun jumping já supera R$ 35 milhões.

Decretação de nulidade da operação. A sanção de nulidade foi frequentemente descartada pelo Cade sob a alegação de custos sociais elevados, ligados, sobretudo, à dificuldade de desfazer negócios jurídicos complexos e aos interesses de terceiros de boa-fé. Outro fator também levado em conta pelo Tribunal foi a situação financeira das partes, como nos casos OGX/Petrobras e JBS/Tramonto, que envolviam empresas em recuperação judicial. Já no caso Gaslocal/Gasmig, a nulidade foi descartada tendo em vista a essencialidade do serviço público de fornecimento de gás natural. Em Blue Cycle/Shimano, apesar de não ter sido decretada a nulidade da operação (no caso, constituição de uma joint venture), o Tribunal decidiu pela decretação de nulidade de um contrato de fornecimento considerado chave para a operação até que fosse concluída a análise de mérito.

Entendimentos divergentes no Cade. Em razão da novidade do tema e da falta de jurisprudência consolidada, não são raros entendimentos divergentes entre a Superintendência-Geral (SG) e o Tribunal do Cade ou entre os próprios membros do Tribunal. Na sessão de 17 de agosto de 2016, o Tribunal concluiu que o pagamento de um sinal de 20% do valor do contrato não configuraria consumação prévia da operação, ao contrário do quanto recomendado pela SG (Hypermarcas/Reckit Benckiser). Na mesma sessão, a maioria do Tribunal discordou do Conselheiro-Relator e decidiu pela imposição de uma multa de R$ 1,5 milhão ao invés de R$ 5 milhões por entender que esta seria desproporcional ao caso em questão (Blue Cycle/Shimano).

Inadmissibilidade de exceções não previamente aprovadas pelo Cade. A urgência no fechamento operação foi suscitada em duas ocasiões pelas partes (Fiat/Chrysler e Cisco/Technicolor) como fundamento para a consumação prévia da operação. O Cade refutou tal argumento indicando que, se fosse o caso, as partes deveriam solicitar a concessão de autorização precária para a consumação da operação, nos termos do rito previsto no Regimento Interno do Cade. No caso Cisco/Technicolor, estabeleceu-se, ainda, que acordos de carve out em operações globais, que objetivam excluir do fechamento da operação aquelas jurisdições que estão com análise antitruste pendente, não têm o condão de evitar a prática de gun jumping, nem mesmo servir de atenuante na dosimetria da pena, tendo o Cade aplicado multa recorde de R$ 30 milhões para indicar a gravidade da conduta. 

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Autores L&S

Ana Paula Martinez

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Sócia
Mariana Tavares de Araujo

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