Garantia fiduciária em favor de instituição financeira estrangeira
Passados quinze anos da entrada em vigor do atual Código Civil, ainda persistem dúvidas sobre o instituto da propriedade fiduciária e sobre quem pode se revestir da condição de credor fiduciário.
A alienação fiduciária transfere a propriedade resolúvel de um bem ao credor com escopo de garantia. Em regra, o devedor permanece na posse direta do bem e o credor fiduciário só poderá se apossar da garantia em caso de não pagamento da dívida no vencimento. Nesse caso, o credor fica obrigado a vender a coisa a terceiros, aplicar o preço no pagamento de seu crédito e das despesas de cobrança, e entregar o saldo, se houver, ao devedor.
A alienação fiduciária foi introduzida no ordenamento jurídico brasileiro pela Lei nº 4.728, de 14 de julho de 1965. Como essa lei disciplina os mercados financeiro e de capitais, formou-se entendimento de que a garantia só poderia beneficiar instituições integrantes desses mercados no Brasil. Em 2002, o Código Civil passou a disciplinar a propriedade fiduciária, instituto análogo à alienação fiduciária, e eliminou dúvidas quanto à possibilidade de qualquer credor se beneficiar desse tipo de garantia.
Em decisão de fevereiro, a 2ª Vara de Falências e Recuperação Judicial de São Paulo decidiu que instituições financeiras estrangeiras não autorizadas a operar no Brasil não têm capacidade subjetiva para ostentarem a qualidade de credoras fiduciárias. Em consequência, foi determinada a reclassificação dos créditos dessas instituições no processo de falência do devedor, de créditos por restituição para quirografários ou com garantia real.
Conforme se lê no julgado, haveria regime jurídico dúplice a disciplinar a propriedade fiduciária de bens móveis: (i) o preconizado pelo Código Civil, quando o credor fiduciário for pessoa natural ou jurídica; e (ii) o estabelecido na Lei 4.728/65, quando o credor fiduciário for instituição financeira. Instituições financeiras estrangeiras estariam excluídas do primeiro regime, por serem instituições financeiras; e também do segundo, por não integrarem o Sistema Financeiro Nacional.
Ocorre que bancos estrangeiros podem ostentar a qualidade de credores fiduciários nos termos do Código Civil, sob o pressuposto obviamente de que o instrumento de garantia preveja o regime estabelecido pela lei civil. Não há proibição a que essas instituições sejam credoras fiduciárias e, conforme o princípio da legalidade, apenas a lei pode impor obrigações ou proibições aos particulares.
Uma das consequências da aplicação do regime fiduciário do Código Civil é que, enquanto a Lei nº 4.728/65 permite a alienação fiduciária sobre bem fungível ou infungível, o Código exclui os bens fungíveis da propriedade fiduciária. Essa limitação é entretanto contornável na maioria dos casos, uma vez que a fungibilidade não é característica objetiva dos bens, mas da abordagem subjetiva de quem os descreve. Assim basta identificar os bens de maneira única, por exemplo, especificando o número de série ou outras características próprias de ações de sociedades anônimas alienadas fiduciariamente, ou, no caso de créditos, descrevê-los precisamente, como créditos decorrentes de depósitos feitos em determinada conta bancária.
Impedir a constituição de garantia fiduciária em favor de instituições financeiras estrangeiras seria inconstitucional, além de resultar no aumento do custo dos empréstimos tomados no exterior e, assim, restringir ainda mais a captação internacional de recursos de que o país tanto necessita.