Plataformas de streaming chegaram recentemente ao Brasil, animadas com a oportunidade de explorar mercado significativo e em crescimento. A estratégia de investir em conteúdo direcionado aos consumidores locais provocou um boom no mercado de produção audiovisual brasileiro nos últimos anos, o que revela interesse dos brasileiros em assistir a histórias locais contadas pelo olhar estrangeiro e o potencial de crescimento do setor.
Documentários e obras de ficção baseados em fatos reais são os tipos de obras audiovisuais preferidos pelas novas empresas de mídia. Tais formatos têm sido muito bem aceitos pelos brasileiros. “Democracia em Vertigem” e “Bandidos na TV” estão entre os 10 programas brasileiros mais vistos na plataforma de streaming que os produziu – e o primeiro foi indicado para o Oscar deste ano na categoria de melhor documentário.
A razão desse sucesso parece ser a incrível fonte de histórias proporcionada pela economia e pela política brasileiras, que acabam inspirando os produtores a escrever roteiros interessantes e informativos. Quais seriam, entretanto, os limites da criatividade? Até onde o autor pode ir sem ultrapassar as barreiras da liberdade de expressão e cometer violações ao direito à privacidade?
O Brasil é um país privilegiado se considerarmos que a liberdade de expressão e o direito à informação são princípios não são apenas consagrados na Constituição Federal, mas também aplicados e valorizados pelos tribunais. No entanto, a mesma Constituição garante também o direito à privacidade, que compreende o direito à vida privada, à reputação e à imagem de qualquer indivíduo e assegura indenização por danos morais e materiais resultantes de sua violação. Esses princípios podem ser contraditórios em casos concretos, como por exemplo em séries biográficas. Como os tribunais os têm balanceado?
Desde o julgamento de caso emblemático pelo Supremo Tribunal Federal em 2015, nenhuma autorização é exigida do indivíduo retratado ou de seus herdeiros para publicação de biografias. Desde então o gênero documentário desfruta de mais liberdade, o que acabou fomentando produções nesse campo. Não obstante, isso não significa que os autores tenham liberdade criativa irrestrita.
Decisões judiciais, principalmente as de segunda instância, tendem a favorecer a liberdade de expressão e o direito à informação, em detrimento do direito à privacidade, desde que certas condições sejam atendidas. Os elementos levados em consideração na análise de pedidos de indenização por danos morais decorrentes de documentários costumam ser a existência de interesse público na divulgação dos fatos; se a publicação ou exposição é de natureza jornalística ou informativa; se a história é baseada em pesquisa diligente e se a pessoa representada é uma pessoa pública ou pessoa que aparentemente não “resguarda” sua intimidade. Pedidos liminares de suspensão da exibição de programas normalmente são rejeitados, preferindo o Judiciário fixar indenização na condenação caso se confirme ao final a procedência do pedido.
Diferentemente de outros países, no Brasil ofensas graves podem configurar crime contra a honra (calúnia, difamação e injúria) mesmo no contexto de obras artísticas, puníveis com prisão e/ou multa. No entanto, tratando-se de obras artísticas, os juízes tendem a aplicar penalidades criminais apenas em casos extremos.
As características acima podem fazer o sistema brasileiro parecer falho na proteção da liberdade de expressão, quando comparado a democracias mais maduras no que diz respeito a documentários. De fato talvez seja cedo para afirmar que a imunidade artística concedida a autores de documentários sob a Primeira Emenda dos EUA será replicada pelos tribunais brasileiros. Mas estamos no caminho certo.
Os brasileiros têm se acostumado a novos tipos de programação e estas vêm ganhando preferência do público em lugar de obras tradicionais de ficção, como telenovelas. Isso significa que existe terreno fértil para investidores estrangeiros oferecerem esse tipo de entretenimento no mercado local, bem como para investirem em produções direcionadas ao mercado brasileiro. A boa notícia é que a legislação e a jurisprudência brasileiras garantem segurança jurídica nessa área.
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