Boletim Tributário - Setembro 2018

I. Alterações Legislativas e Normativas

I.1. PGFN e o cadastro de bons contribuintes

Teve fim no último dia 31 de agosto o prazo de consulta pública sobre o Cadastro Fiscal Positivo da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN)1, que objetiva identificar e segregar os contribuintes em diversos perfis e graus de risco para conferir aos “bons pagadores” um tratamento simplificado e benéfico.

Contribuintes classificados com pequeno grau de risco e com histórico positivo terão tratamento diferenciado em cobranças e regularizações, acesso a canais de atendimento simplificado e a modalidades diferenciadas de garantia de dívidas. Por sua vez, contribuintes classificados como de risco elevado, qualificados como “devedores contumazes”, passarão a sofrer “procedimentos de cobrança coativa adequados ao risco de inadimplemento que representam para a sociedade como um todo.

Dessa redação abrangente, imaginamos que esses devedores contumazes se sujeitarão a procedimentos semelhantes aos do Regime Diferenciado de Cobrança de Créditos (RDCC) da Portaria PGFN nº 396, de 20 de abril de 2016, que prevê medidas como a sistemática e periódica consulta às bases de dados patrimoniais dos devedores para localização de bens e direitos expropriáveis.

A proposta da PGFN se espelha no Programa de Estímulo à Conformidade Tributária – “Nos Conformes” – do Estado de São Paulo, criado pela Lei Complementar nº 1.320, de 6 de abril de 2018. Neste programa, devedores contumazes se sujeitam a fiscalização especial e os contribuintes que tenham boa avaliação têm acesso a diversas contrapartidas por parte do Estado. Uma delas é o procedimento de Análise Fiscal Prévia (AFP), no qual o Agente Fiscal notifica o contribuinte de indícios de irregularidade, que poderão ser corrigidos sem a imposição de penalidades.

Essas iniciativas representam mudança de abordagem e são louváveis, especialmente ao se considerar a complexa e extensa legislação tributária brasileira. Tais propostas deveriam também conceder facilidades àqueles contribuintes que estejam em situação irregular e eventualmente não tenham boa avaliação no cadastro de contribuintes, mas queiram se adequar.

II. Decisões Administrativas

II.1. Distribuição desproporcional de lucros validada pelo Carf

No último dia 28 de agosto, a 1ª Turma da 4ª Câmara da 2ª Seção do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) publicou acórdão2 no qual reconheceu a legalidade da distribuição desproporcional de lucros em sociedade simples para cancelar débito de contribuição previdenciária exigida sobre os lucros distribuídos em excesso à participação dos sócios no capital social. O contribuinte era sociedade de advogados (sociedade simples de prestação de serviços profissionais legalmente regulamentados).

Pela atual legislação tributária, o lucro regularmente distribuído aos sócios não se sujeita à incidência de imposto de renda ou de contribuição previdenciária.

Na hipótese de a distribuição ser tida por irregular, os valores podem adquirir a natureza de pró-labore (contraprestação pelos serviços do sócio), sujeitando-se à incidência dos mencionados tributos.

Para que a distribuição seja considerada regular, é necessário por exemplo que o contrato social autorize expressamente a distribuição desproporcional de lucros; a contabilidade esteja regular; a apuração de lucro esteja regular e contabilizada, e as distribuições sejam feitas aos sócios somente se a sociedade tiver lucros do exercício, lucros acumulados e/ou reservas de lucros que comportem a distribuição; haja discriminação entre a remuneração decorrente do trabalho e a proveniente do capital social (ainda que seja para estabelecer que nada será pago a título de pró-labore); e adiantamentos de resultado sejam feitos com prévia apuração dos valores em balancete contábil e demonstração dos resultados.

De toda forma, a discussão não é nova. O Carf e a própria Receita3 já admitiram a distribuição desproporcional sem as citadas incidências tributárias, inclusive para sociedades limitadas. Havendo previsão no contrato social, como admitem os arts. 997, inciso VII, e 1.007, do Código Civil, e observados os demais cuidados citados acima, a distribuição desproporcional pode ser feita regularmente.

O que mais chamou a atenção nesse julgado de agosto foi o menor peso dado pelo Carf a formalidades relativas à distribuição de lucros.

O contrato social exigia que a distribuição desproporcional obtivesse a aprovação de 75% dos sócios e que os critérios dessa distribuição fossem posteriormente registrados em ata. No caso, a ata foi substituída por e-mails entre os sócios, dos quais constavam informações sobre a proposta de distribuição, seu valor e data do pagamento. Isso foi visto pelo Fiscal responsável pela autuação como uma inadequação formal grave o suficiente para descaracterizar a distribuição de lucro e transformá-lo em pró-labore.

Entretanto, a Turma reconheceu que com a evolução da tecnologia o e­mail pode substituir a elaboração de ata, e que foi atendido o quórum mínimo estabelecido no contrato social para aprovação dos sócios: “a comunicação empresarial, que antes se apoiava em memorandos, murais de aviso, atas, entre outros, com o advento e evolução da tecnologia, foi potencializada e hoje conta com meios muito mais efetivos e abrangentes, como é o caso da mensagem virtual (e-mail).

Dessa forma, a distribuição foi tida por regular, pois o descumprimento de meras formalidades não desvirtuaria a natureza do pagamento nem geraria presunção de pagamento de pró-labore.

Mas nem sempre o Carf acata a distribuição desproporcional. Em julgamento de novembro de 2017, a 2ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) entendeu fraudulenta uma distribuição desproporcional. Preponderante para essa conclusão foi o fato de que o lucro era direcionado, após complexa operação societária, aos diretores da própria sociedade autuada, o que demonstraria ser remuneração (gratificação) o valor pago4.

Para diminuir o risco de questionamentos da Receita, as sociedades que optem pela distribuição desproporcional de lucros devem observar as condições citadas acima e, se possível, também seguir as formalidades relativas à distribuição de lucros.

III. Decisões do Poder Judiciário

III.1. Não recolhimento de ICMS próprio é crime

Por cinco votos a três, a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ)5 decidiu que o não recolhimento do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) em operações próprias, mesmo que devidamente declaradas, constitui crime de apropriação indébita tributária do art. 2º, II, da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 19906, punível com multa e pena de detenção de seis meses a dois anos.

Normalmente, esse crime é imputado ao responsável tributário que deixa de recolher aos cofres públicos tributo retido/cobrado do efetivo contribuinte, como é o caso do empregador que deixa de recolher contribuição previdenciária ou imposto de renda retidos sobre a remuneração de seus funcionários, ou do substituto tributário do ICMS que deixa de recolher o imposto devido pelos demais contribuintes da cadeia de consumo, cobrado de forma antecipada. O responsável tributário nessas hipóteses recebe a incumbência legal de pagar tributo devido por terceiro (contribuinte), mas não o faz.

No entanto, nessa nova decisão, o STJ não se limitou a tal situação. Estendeu o crime ao contribuinte que deixa de recolher imposto próprio (ICMS, no caso), regularmente declarado, hipótese que deveria configurar mero inadimplemento de obrigação tributária.

O Relator, Ministro Rogério Schietti, apontou que o crime de apropriação indébita se configura quando o agente se apropria indevidamente de coisa fungível que lhe foi conferida para transmissão a terceiro. Na apropriação indébita tributária, tal crime estaria configurado quando o sujeito passivo da obrigação tributária desconta ou cobra de terceiro o valor do tributo, mas deixa de repassá-lo aos cofres públicos.

No caso do ICMS, o contribuinte cobraria o tributo de terceiro por força da sistemática de incidência: ele paga o imposto sobre operações próprias e é reembolsado desse valor com a transferência do encargo para o comprador no preço final da mercadoria. Dessa forma, o ICMS sempre seria “cobrado” da pessoa seguinte na relação de consumo, no entender do STJ.

O Ministro Reynaldo Soares da Fonseca destacou também que tal conclusão estaria em linha com precedente do Supremo Tribunal Federal (STF) que excluiu o ICMS da base de cálculo do Programa de Integração Social (PIS) e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins). Nesse julgado, decidiu-se que o ICMS não seria receita da empresa vendedora da mercadoria. Esta faria apenas o papel de intermediário no repasse ao Estado do imposto cobrado do consumidor, o que reforçaria ser de terceiro o bem apropriado.

Embora o encargo financeiro do ICMS seja repassado, isso não significa que ele seja “cobrado” de terceiro, o que descaracteriza o crime. O consumidor não é contribuinte nem responsável tributário do ICMS, no sentido técnico, o que significa que ele nunca será “cobrado” pelo pagamento do imposto devido na operação.

Do contrário, poder-se-ia chegar ao absurdo de concluir que o não recolhimento de quaisquer tributos configuraria crime de apropriação indébita, já que o custo de todos eles acaba sendo embutido no preço final de produtos e serviços e repassado ao consumidor.

De toda forma, a questão ainda deve ser decidida de forma definitiva pelo STF.

Em março de 2017, o Plenário Virtual do STF, ao analisar esse mesmo crime de apropriação indébita tributária em caso de não recolhimento de ICMS próprio7, manifestou-se no sentido de que os crimes previstos na Lei nº 8.137/91 não se configuram com a simples falta de recolhimento de tributo (inadimplência), mas sim com condutas fraudulentas e dolosas praticadas com o fim de sonegação (dolo específico).

Isso significa que não haveria crime, mas mero inadimplemento, na hipótese de o contribuinte deixar de recolher tributo próprio devidamente declarado. Ao declarar o tributo, o contribuinte mostra boa-fé, reconhece a dívida e dá ao Fisco todas as condições de lhe cobrar o tributo a qualquer momento, com juros e multa inclusive.

Apesar dessa sinalização inicial favorável do STF, o julgamento se deu no âmbito do Plenário Virtual, o que inviabiliza discussões aprofundadas por parte dos Ministros. O contribuinte apresentou embargos de declaração com o fim de esclarecer aparente contradição da decisão, ainda pendentes de julgamento. Importante acompanhar o julgamento deste recurso para verificar qual será a palavra final do STF a respeito.


1. Edital PGFN nº 13, de 12 de julho de 2018.
2. Acórdão nº 2401-005.677.
3. Acórdãos Carf nºs 2302-003.211 e 2401-005.592 e Solução de Consulta nº 46, de 24 de maio de 2010, da Superintendência Regional da Receita Federal do Brasil da 6ª Região Fiscal.
4. Acórdão nº 9202-006.226.
5. Habeas Corpus nº 399.109.
6. “Art. 2º. Constitui crime da mesma natureza: (...) II – deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos;
7. Repercussão Geral no Recurso Extraordinário com Agravo nº 999.425.

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Autores L&S

Camila Mariotto

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Consultora
Felipe Kneipp Salomon

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Advogado
Isabela Schenberg Frascino

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