I. Alterações legislativas e normativas
I.1 Estado de São Paulo regulamenta ICMS sobre bens e mercadorias digitais
A Portaria nº 24 do Coordenador da Administração Tributária (CAT) do Estado de São Paulo, de 23 de março de 2018, determinou a forma de cobrança do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS) nas operações com bens e mercadorias digitais destinadas a consumidor final do Estado.
Ficam sujeitos ao imposto bens e mercadorias digitais inseridos em uma cadeia massificada de comercialização, tais como os softwares padronizados (de prateleira), independentemente de serem utilizados pelo adquirente mediante transferência eletrônica de dados (download) ou em nuvem, assim como os conteúdos de áudio, vídeo, imagem e texto, com cessão definitiva (download).
Ao restringir a incidência do imposto aos softwares de prateleira e aos conteúdos de mídia obtidos com cessão definitiva, o CAT solucionou potencial problema de bitributação criado pelo Decreto 63.099, de 22 de dezembro de 2017, do Estado de São Paulo – que previu de forma genérica a cobrança do ICMS sobre esses bens e mercadorias.
Como noticiamos em nosso Boletim Tributário de Janeiro de 2018, a redação abrangente permitia a incidência de ICMS sobre softwares por encomenda (aqueles desenvolvidos para atender a uma necessidade específica do consumidor) e sobre a disponibilização de conteúdo de mídia via streaming, ambos já sujeitos ao Imposto sobre Serviços (ISS) – o primeiro por decisão judicial1 e, o segundo, por disposição legal2.
Apesar de a portaria esclarecer esse ponto, problemas quanto à exigência do ICMS persistem. Por exemplo, ao se referir a softwares de prateleira utilizados em nuvem, a norma trata dos Softwares as a Service (SaaS), em que o usuário acessa o software nos servidores externos do fornecedor localizados na nuvem, sem o download do programa nem instalação na máquina local. Nesse modelo, não há “circulação” a justificar o ICMS, entendida como a transferência de titularidade de mercadoria3. Há somente cessão temporária de uso, sobre a qual não incide ICMS.
Além disso, como legislações municipais (a exemplo de São Paulo) contêm previsão de cobrança do ISS sobre licenciamento ou cessão de direito de uso de software, sem limitação quanto ao meio de uso (suporte físico, download ou SaaS) e independentemente de se tratar de software por encomenda ou de prateleira, permanece o risco de bitributação de software de prateleira pelo ICMS e ISS.
Solução apropriada deveria vir do Legislativo Federal, com a edição de normas claras, o que evitaria inseguranças oriundas da proliferação de legislações estaduais e municipais contraditórias, bem como os custos e a morosidade das discussões judiciais.
II. Decisões Administrativas
II.1 Alargamento do conceito de “praça” para fins de IPI
Duas decisões da 3ª Seção do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf)4 negaram recursos de contribuintes que objetivavam cancelar lançamento de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) em ações que questionavam a definição de “praça” do remetente.
De acordo com o Regulamento do IPI (RIPI), quando o estabelecimento industrial remete mercadorias a estabelecimento comercial atacadista próprio ou de firma interdependente, deve adotar o Valor Tributável Mínimo (VTM) como base de cálculo do imposto, que equivale ao preço corrente da mercadoria no mercado atacadista da praça do estabelecimento industrial remetente.
Defendem os contribuintes que o conceito de “praça” deve ser entendido como o espaço geográfico de um município. E não havendo preço corrente da mercadoria no mercado atacadista da praça do remetente (por exemplo, quando há ali apenas o estabelecimento industrial do contribuinte atuando no respectivo ramo empresarial), o VTM corresponderá ao custo de fabricação acrescido de outros custos (e.g. financeiros, de venda, administração, publicidade) e de margem de lucro.
Nos dois julgamentos, no entanto, a posição defendida pelo Fisco prevaleceu. A 1ª Turma da 2ª Câmara, por exemplo, decidiu que a praça do remetente seria o local geográfico até onde se estende o campo de atuação de seu estabelecimento atacadista, o que poderia, a depender da situação, fazer com que o conceito abarcasse todo o território nacional. Assim, o VTM seria determinado com base no preço praticado pelo atacadista, ainda que localizado em município ou estado distinto5.
O VTM visa coibir a manipulação da base de cálculo do IPI. No entanto, não se pode admitir que conceitos de direito privado sejam distorcidos para justificar exigências tributárias abusivas, em violação ao disposto no art. 110 do Código Tributário Nacional (CTN)6. A equiparação de praça ao território nacional é equivocada. Além disso, correspondendo o VTM ao preço da mercadoria na praça do remetente, é inadmissível aceitar que o parâmetro passe a ser a praça do atacadista destinatário da remessa equivale a ignorar literal disposição de lei.
Como exposto pela 2ª Turma da 4ª Câmara da mesma 3ª Seção em julgamento de agosto de 20177, leis e normas esparsas8 esclarecem que praça corresponde ao recorte geográfico de um município, sendo que o próprio RIPI, ao tratar do arbitramento do valor tributável, determina que se deve tomar por base preferencialmente o preço médio no mercado do domicílio do contribuinte, o que remete ao conceito de município.
Se o intuito é evitar a elisão fiscal, cabe ao Poder Legislativo federal editar lei que substitua o termo “praça” por outro termo ou definição sobre a área geográfica abrangida pela norma.
Confiamos que decisão ponderada será tomada pela Câmara Superior de Recursos Fiscais (CRSF) ao julgar o tema, prevalecendo interpretação que não extravase os limites legais.
III. Decisões do Poder Judiciário
III.1 Sentença autoriza compensação de IRPJ/CSLL antes da entrega da ECF
Sentença da 1ª Vara Federal de São Bernardo do Campo do dia 14 de março9 reconheceu o direito de empresa compensar saldo negativo de Imposto de Renda Pessoa Jurídica (IRPJ) e de Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) apurado no ano de 2017 antes da entrega da Escrituração Contábil Fiscal (ECF) em 2018.
De acordo com a Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996, o contribuinte sujeito ao lucro real pode optar pelo pagamento mensal do imposto calculado sobre uma base de cálculo estimada que varia de acordo com a atividade da empresa. É comum que, encerrado o ano fiscal, o contribuinte tenha recolhido IRPJ/CSLL a maior do que o devido, registrando saldo negativo que poderá ser compensado com tributos devidos nos meses seguintes.
Até a publicação da Instrução Normativa nº 1.765, de 30 de novembro de 2017, a Receita Federal do Brasil (RFB) autorizava que saldos negativos pudessem ser compensados a partir de janeiro do ano-calendário seguinte10. A partir da IN, a Receita passou a condicionar a compensação à entrega da ECF, que deve ser apresentada até o último dia do mês de julho do ano seguinte ao do encerramento do período de apuração.
Esta restrição não encontra amparo legal, já que a Lei nº 9.430/96 autoriza o contribuinte a requerer a restituição ou compensação do saldo negativo sem condicioná-lo à apresentação de obrigação acessória além do próprio pedido de restituição ou declaração de compensação.
Em tese, o contribuinte poderia apresentar a ECF ainda em janeiro, o que autorizaria a imediata compensação do saldo negativo. No entanto, as informações exigidas pelo sistema são tantas que, na prática, a entrega antecipada não é factível. As quase 600 folhas do Manual de Orientação de Preenchimento da ECF corroboram essa impossibilidade. Além disso, eventuais erros provocados por preenchimento acelerado são puníveis com multa.
A IN nº 1.765/17 tem por efeito prático postergar o exercício do direito à compensação pelo contribuinte, obrigando-o a desembolsar recursos para pagar tributos mesmo sendo credor da Fazenda.
Ante esse quadro, a 1ª Vara de São Bernardo entendeu que a IN seria ilegal, pois criou obstáculo ao direito à compensação tributária, sem qualquer lastro legal, além de preterir e discriminar contribuintes que têm crédito a receber.
A sentença serve de precedente para que outros contribuintes busquem o Poder Judiciário com o fim de permitir a compensação de saldo negativo sem a condição imposta pela IN nº 1.765/17. Não se pode admitir que o direito de reaver aquilo que foi pago a mais seja condicionado a intermináveis e complexas burocracias estatais, sobretudo quando a condição é imposta por instrução normativa, que tem função meramente instrumental e não pode inovar para criar limitações inexistentes na lei. Deveria a Receita admitir a imediata compensação para posteriormente confrontá-la com os dados declarados na ECF.
1 Supremo Tribunal Federal, Recurso Extraordinário nº 176.626, no qual a corte deixou claro que (i) o ICMS só poderia ser cobrado nas aquisições de software de prateleira, considerado mercadoria, e (ii) software por encomenda caracteriza prestação de serviços sujeita exclusivamente ao ISS.
2 Lei Complementar nº 157, de 29 de dezembro de 2016, que incluiu no campo de incidência do ISS a disponibilização, sem cessão definitiva, de conteúdos de áudio, vídeo, imagem e texto por meio da internet, respeitada a imunidade de livros, jornais e periódicos (exceto a distribuição de conteúdos pelas prestadoras de Serviço de Acesso Condicionado, de que trata a Lei no 12.485/11, sujeita ao ICMS). A cobrança de ISS sobre streaming pode ser questionada, como indicamos em nosso boletim Incidência de ISS sobre streaming pode ser questionada.
3 Vide, sobre o assunto, também o Boletim Tributário – Novembro 2017 (I.2 Confaz autoriza ICMS sobre softwares comercializados eletronicamente).
4 Uma, da 1ª Turma da 3ª Câmara, no Processo Administrativo nº 16561.720176/2012-16; a outra, da 1ª Turma da 2ª Câmara, no Processo Administrativo nº 16561.720182/2012-65.
5 Pesaram, no caso, os fatos de a sede do atacadista estar localizada na mesma praça da remetente (município de São Paulo), apesar dos Centros de Distribuição estarem em localidades distintas; o atacadista ser único/exclusivo; e dos produtos serem comercializados em todo o país e internacionalmente, independentemente da sua presença física nos municípios.
6 “Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.”
7 Processo Administrativo nº 16682.722461/2015-30.
8 Lei do Cheque – Decreto n. 2.591/1912, Parecer Normativo do Coordenador do Sistema de Tributação (COSIT) n. 44/1981, Ato Declaratório Normativo COSIT n. 5/1982 e art. 70 do Código Civil de 2002.
9 Mandado de Segurança nº 5000448-24.2018.4.03.6114.
10 Ato Declaratório da Secretaria da Receita Federal nº 3, de 7 de janeiro de 2000.