A MP nº 784/17 e as novas regras aplicáveis a infrações no mercado de capitais
A Medida Provisória (MP) nº 784, em vigor desde 8 de junho de 2017, ampliou os poderes punitivos do Banco Central e da Comissão de Valores Mobiliários (CVM)1.
Em relação à CVM – tema central deste artigo – a MP nº 784/17 criou um programa de leniência, aumentou penalidades e adotou novos procedimentos punitivos.
Acordo de leniência
O programa de leniência criado pela MP nº 784/17 é inspirado no programa existente desde 2000 no âmbito do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).
Os artigos 30 a 33 e 35 da MP conferem à CVM poderes para celebrar acordos de leniência segundo os quais as pessoas físicas ou jurídicas que colaborarem com o processo se beneficiam de extinção da ação punitiva da autarquia ou de redução de um a dois terços da penalidade aplicável. A cooperação para apuração dos fatos deve resultar na identificação dos demais envolvidos na infração e na obtenção de documentos que a evidenciem.
Para que o acordo de leniência seja possível, (i) o requerente deve ser o primeiro a confessar e se qualificar com respeito à infração noticiada ou sob investigação (requisito dispensado para pessoas físicas); (ii) o envolvimento na infração noticiada deve cessar completamente a partir da data de propositura do acordo; (iii) a CVM não deve dispor de provas suficientes para assegurar a condenação das instituições ou das pessoas físicas na data da propositura do acordo; e (iv) a cooperação com as investigações deve ser plena e permanente. Se todos os requisitos do programa forem preenchidos por uma pessoa jurídica, exceto o do item (i), a leniência poderá ser concedida por meio da redução de um terço das penalidades aplicáveis.
A MP nº 784/17 não prevê a participação do Ministério Público nos acordos de leniência. Como o Ministério Público é o titular da ação penal, sem a sua participação os acordos terão consequências apenas em relação a penalidades administrativas.
As regras aplicáveis aos termos de compromisso permanecem inalteradas. Os requisitos para os termos de compromisso não exigem indicação de conduta ilícita de terceiros, apenas a obrigação de cessar determinada prática e pagar pelos danos dela decorrentes, tendo como contrapartida a suspensão do processo administrativo sancionador. As receitas provenientes de termos de compromisso serão destinadas ao Fundo de Desenvolvimento do Mercado de Valores Mobiliários, que será administrado pela CVM com o propósito de promover o desenvolvimento do mercado de capitais e educação financeira por meio de projetos da autarquia.
Aumento das penalidades administrativas
Ao alterar o artigo 11 da Lei nº 6.385, de 7 de dezembro de 1976, a MP nº 784/17 modificou o regime de penalidades que podem ser impostas pela CVM por meio de processos administrativos. Dentre as punições estabelecidas estão: advertência, multa, suspensão da autorização ou registro para o exercício das atividades de que trata a lei e inabilitação temporária para o exercício de algumas atividades relacionadas ao mercado de capitais.
A multa não poderá exceder: (i) R$ 500 milhões; (ii) o dobro do valor da emissão ou da operação irregular; (iii) três vezes o montante da vantagem econômica obtida ou da perda evitada em decorrência do ilícito; ou, (iv) no caso de pessoa jurídica, 20% do valor do faturamento total individual ou consolidado do grupo econômico, obtido no exercício anterior à instauração do processo administrativo sancionador. A multa no caso de não cumprimento de ordem da CVM pode alcançar o valor de R$ 100 mil por dia.
A CVM também poderá proibir o acusado de contratar com instituições financeiras oficiais por até cinco anos e de participar de licitação tendo por objeto aquisições, alienações, realizações de obras e serviços e concessões de serviços públicos. A MP não determina prazo para a proibição de participar de licitações. Este ponto precisa ser esclarecido, uma vez que não seria razoável uma punição por prazo ilimitado.
A nova redação do artigo 11 da Lei nº 6.385/76 deixa claro que as penalidades acima podem ser impostas isoladas ou de forma cumulativa pela CVM.
Novas regras processuais
O processo administrativo para aplicação de penalidades foi reformulado pela MP nº 784/17.
O artigo 29 estabelece como regra geral que os recursos contra as decisões condenatórias não terão efeito suspensivo. O acusado poderá requerer o efeito suspensivo à mesma autoridade que proferiu a decisão recorrida, que poderá conceder o pedido se houver justo receio de prejuízo de difícil ou incerta reparação e se assim exigir o interesse público. Excepcionalmente, o recurso contra decisão que impuser a penalidade de censura pública ou de multa será recebido com efeito suspensivo.
Ao prever que “incumbe ao acusado o ônus da prova dos fatos que alegar”, o artigo 27 pode gerar preocupações quanto ao devido processo legal, já que estaria invertendo o ônus da prova. A melhor interpretação do dispositivo, no entanto, é no sentido de que ele apenas estabelece que os acusados devem provar os fatos alegados em sua defesa, regra geral em processos administrativos.
Os artigos 23 e 24 da MP nº 784/17 autorizam a CVM a notificar os acusados por meio eletrônico.
Retroatividade
As penalidades majoradas pela MP nº 784/17 serão aplicadas apenas a condutas futuras.
Por outro lado, acordos de leniência podem abranger infrações que tenham ocorrido antes da publicação da MP. Diferentemente de novas penalidades ampliadas, que em virtude de princípios constitucionais não se aplicam a violações passadas, novas regras processuais se aplicam imediatamente.
Conclusão
A MP nº 784/17 deixou lacunas que precisam ser detalhadas pela CVM. Representantes da autarquia anunciaram que serão promovidas discussões públicas com participantes do mercado a respeito da aplicação das novas regras.
Há uma expectativa do mercado de que o Governo Federal altere a MP nº 784/17 para prever uma ação integrada do Ministério Público e da CVM (ou do BC no caso de infrações cometidas por agentes do sistema financeiro2), cooperação que pode alcançar resultados mais efetivos do que atuações isoladas.
No âmbito do Congresso Nacional, há uma tendência no sentido de emendar a MP nº 784 para permitir cooperação entre BC e CVM, de um lado, e o Ministério Público. Por exemplo, o parecer de 29 de agosto da senadora Lídice da Mata (PSB-BA), relatora da comissão mista instaurada para analisar a MP nº 784/17, admite que o Ministério Público possa acessar os dados dos termos de compromisso e dos acordos de leniência firmados entre BC e CVM com instituições financeiras para utilizá-los em investigações, inclusive nos casos sob sigilo. A MP deve ser convertida em lei pelo Congresso em sessenta dias a partir de sua publicação, prazo prorrogável por igual período.
1 De acordo com a CVM, a MP tem por objetivo garantir “(i) maior efetividade dos processos administrativos sancionadores, aprimorando a sua utilização como um instrumento efetivo de orientação aos destinatários da atividade regulatória; (ii) ampliação das alternativas de sanções e instrumentos regulatórios para lidar com os diversos tipos de irregularidades de maneira mais adequada e proporcional; e (iii) criação de condições para que a CVM obtenha resultados mais céleres e efetivos em suas ações de supervisão, fortalecendo seu papel de dissuadir a prática de infrações”. Vide em http://www.cvm.gov.br/noticias/arquivos/2017/20170608-1.html.
2 http://www.valor.com.br/financas/5002248/governo-quer-dar-poder-ao-bc-para-atuar-em-leniencia.