Tokenização: o próximo passo da modernização do campo
Texto publicado na Revista Capital Aberto
Autores: Eduardo Salomão, Fabio Kuppfermann e Eduardo Pilon
O agronegócio passa por constantes modernizações, incorporando tecnologias não apenas nas etapas de produção, armazenamento e distribuição de produtos e serviços, mas também aos métodos de financiamento dos produtores rurais. A difusão de projetos de tokenização no agronegócio é um próximo passo. Esses projetos têm o potencial de fomentar a captação de valores por produtores e, ao mesmo tempo, o investimento no agronegócio, sendo extremamente positivos ao setor.
De maneira resumida, tokenização refere-se ao processo de representar digitalmente um ativo ou a propriedade dele. É possível transformar ativos reais, como safras e estoques, em ativos digitais negociáveis. Na verdade, as possibilidades são inesgotáveis. É possível tokenizar, por exemplo, imóveis, obras de arte, ações de empresas, commodities e até mesmo direitos de propriedade intelectual.
No agronegócio, não é diferente. Pode-se tokenizar direitos decorrentes de contratos de arrendamento rural, de propriedade sobre imóveis rurais ou créditos de carbono originados em cadeias produtivas do agronegócio. Também é possível tokenizar títulos de crédito ligados ao setor, como Cédulas de Produto Rural (CPR), Certificados de Recebíveis do Agronegócio (CRA) e Cédulas de Crédito Bancário (CCB) representativas de empréstimos a produtor rural.
Esses ativos tokenizados poderiam compor a carteira dos Fundos de Investimento nas Cadeias Produtivas do Agronegócio (Fiagro), cujas regras definitivas serão publicadas em breve pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Eventualmente, as cotas do Fiagro, aliás, seriam elas mesmas tokenizáveis.
Outra aplicação pouco explorada é a tokenização de participação societária de empresas da cadeia do agronegócio, fazendo com que a oferta desses investimentos se beneficie da infraestrutura blockchain e dos contratos inteligentes. A blockchain permite conciliar informações para finalizar um negócio de maneira quase instantânea. Ou seja, é gerado um comando pelo qual só haverá transferência do ativo a se a transferência do ativo b ocorrer e vice-versa.
Essa automação afasta a necessidade operacional de atividades de pré-negociação, como listagem de valores mobiliários em bolsa. Adicionalmente, mitiga risco de contraparte e a necessidade operacional de uma câmara de compensação e liquidação que participe da pós-negociação como contraparte central. Assim, parte das atividades tipicamente atribuídas a intermediários tradicionais de mercado poderia ser transferida a entidades tokenizadoras.
Além disso, as ofertas tokenizadas poderiam alterar e, em parte, dispensar registros perante a CVM. A oferta pública de valores mobiliários, como ações, depende de prévio registro na CVM.
Entretanto, ao contrário do que possa parecer, o processo típico de tokenização não origina valores mobiliários, e sim documentos de legitimação.
A diferença básica entre os valores mobiliários e os documentos de legitimação é que os primeiros geram um direito, enquanto os segundos apenas comprovam a titularidade de uma relação jurídica. O token não se confundirá com a ação ou outro título subjacente. E precisa ser acompanhado de uma promessa de prestação de serviços pela exchange tokenizadora ao detentor do token, pela qual o detentor poderá usar os serviços da exchange para obter a transcrição em seu nome do valor mobiliário, no momento de sua negociação.
Essa promessa gera direito pessoal do adquirente do token contra a exchange, mas não direito real sobre o próprio valor mobiliário. Portanto, nem o token nem os direitos decorrentes dessa promessa da exchange constituem valores mobiliários.
Apesar de a estrutura dispensar registros da oferta e dos emissores dos tokens perante a CVM, essas obrigações continuarão aplicáveis aos valores mobiliários subjacentes. Em outras palavras, serão necessárias a participação de instituição do sistema de intermediação para a oferta ao mercado e a obtenção de registro da oferta e emissora dos valores mobiliários (ou de dispensa dele). Porém, há uma diferença essencial: os registros seriam paralelos à atuação da exchange, devendo ser promovidos pela ofertante e pelos intermediários sem a participação dela.
A tokenização pode impactar positivamente o agronegócio brasileiro, atento a mecanismos de modernização dos processos de financiamento. Tanto no que se refere à tokenização de recebíveis e commodities, como também de participação societária em empresas do agronegócio. Neste caso, a sistemática de tokenização pode simplificar atividades de pré e pós negociação, transferir atividades de emissão e circulação a entidades tokenizadoras e alterar a necessidade de registros.
Um trabalho de convencimento da autoridade supervisora do mercado de capitais poderá ser necessário. Diante da manifesta disposição e capacidade técnica apresentadas pela CVM para acompanhar a integração de tecnologias ao mercado de capitais, o diálogo pode ser promissor. Com uma combinação entre, de um lado, uma CVM atenta às inovações do setor e, de outro, agentes privados capazes de converter tecnologias associadas à blockchain em benefícios tangíveis, o financiamento do agronegócio poderá caminhar para um futuro mais tokenizado.
Créditos da imagem: reprodução Capital Aberto