Sem dolarização à vista na nova lei cambial

Artigo publicado no Valor Econômico

A nova lei cambial - Lei nº 14.286, de 29 de dezembro de 2021 - tem sido alvo de críticas por parte de quem acredita que ela poderá promover a dolarização da economia e aumentar a vulnerabilidade externa do país. Porém essas críticas não resistem a uma análise mais detida.

A dolarização seria incentivada, diz-se, porque a nova lei permite a abertura de contas em moeda estrangeira pelos residentes no Brasil, o que poderia resultar no uso crescente do dólar por parte destes e na ampliação da capacidade de especulação contra o real em momentos de maior incerteza. Isso não é verdade, por vários motivos.

Em primeiro lugar, porque não há novidade nenhuma nessa permissão. O decreto nº 42.820, de 16 de dezembro de 1957, dispõe em seu artigo 27 que o Conselho da Superintendência da Moeda e do Crédito - hoje Conselho Monetário Nacional (CMN) - pode autorizar a abertura e movimentação de contas em moeda estrangeira por pessoas físicas ou jurídicas localizadas no Brasil, em bancos autorizados a operar em câmbio no país. Com base nisso já são autorizadas contas em moeda estrangeira para determinadas categorias, como prestadores de serviços turísticos e agentes autorizados a operar em câmbio. Autorizações mais amplas seriam possíveis.

Parece-nos assim que o mérito da nova lei, nesse ponto, além de transferir a competência para o Banco Central (que já a exerce por delegação), foi o de refrescar a memória do público em geral sobre essa possibilidade.

O Banco Central já avisou que não pretende, ao menos por ora, liberar a abertura de contas em moeda estrangeira para qualquer pessoa. Mas ainda que o faça, isso não resultaria em adoção generalizada do dólar como moeda de pagamento, dado que a nova lei não revoga o curso legal do real. Pagamentos no Brasil, como regra geral, continuarão sendo feitos obrigatoriamente em moeda nacional.

A nova lei estabelece casos excepcionais em que é permitida a estipulação de pagamento em moeda estrangeira de obrigações exequíveis no território nacional. A maioria deles corresponde a hipóteses já permitidas pela legislação atual, em especial o Decreto-Lei 857, de 11 de setembro de 1969. Há algumas novidades muito bem-vindas, como a referente a contratos celebrados por exportadores em que a contraparte seja concessionária, permissionária, autorizatária ou arrendatária nos setores de infraestrutura, e a situações em que a estipulação em moeda estrangeira possa mitigar o risco cambial ou ampliar a eficiência do negócio. Novidades que estão longe de representar risco de dolarização da economia.

Mas e o risco de migração da poupança interna para contas em dólar? Bem, se ele existe não é culpa da nova lei. Mesmo pelas regras atuais (lembremos que a Lei nº 14.286 entrará em vigor apenas no dia 30 de dezembro de 2022) qualquer pessoa pode livremente abrir conta no exterior e transferir para ela recursos do Brasil, desde que o faça pelos canais oficiais, pague os tributos e declare o saldo às autoridades brasileiras. Aliás, já em 1993 o Banco Central publicou cartilha explicativa do regime cambial então em vigor na qual esclarecia que qualquer brasileiro podia transferir seus recursos para o exterior e mantê-los por lá.

Pode-se argumentar que a abertura de conta no exterior é acessível hoje a pequena parcela da população e por isso não representa grande risco, mas que o cenário mudaria se todos puderem ter conta local em moeda estrangeira. De fato, abrir conta em banco estrangeiro tende a ser tarefa sofisticada, às vezes até mesmo pela barreira linguística. Mas tem se tornado cada vez mais fácil, inclusive por iniciativa de fintechs focadas nesse mercado. Além disso, investidores com maior potencial de influência sobre o câmbio não têm dificuldade em abrir conta no exterior. Para eles a nova lei nada muda.

Outro ponto que tem recebido críticas é a possibilidade de instituições financeiras brasileiras aplicarem ou emprestarem no exterior recursos captados no país. Hoje essa prática é vedada pela Circular nº 24, de 25 de fevereiro de 1966, dispositivo que inclusive foi declarado pelo CMN “em desuso” em 1978 e novamente “em reúso” (ou melhor, em vigor) em 2013.

Supostamente isso permitiria ataques especulativos contra a moeda brasileira por parte de investidores (estrangeiros e malvados) que poderiam mais facilmente se endividar em real no exterior por haver captação no Brasil como lastro, apostando na queda de nossa moeda. Sim, é possível. Só que o investidor (estrangeiro ou brasileiro) que deseje realizar essa malvadeza dispõe já hoje de amplo arsenal para tanto, inclusive derivativos referenciados em real negociados em bolsas no exterior.

Na verdade, a estabilidade da moeda deve-se muito mais aos fundamentos econômicos do país que ao arcabouço normativo.  “Bad money drives out good”, moeda ruim expulsa a boa, reza a conhecida Lei de Gresham, que a Lei nº 14.286 não revoga. Tentar conter a fuga de divisas proibindo ou dificultando o câmbio é tão eficiente quanto o congelamento de preços no combate à inflação. Tanto um quanto outro conseguem apenas fomentar o mercado negro.

Economias estáveis não restringem a abertura de contas em moeda estrangeira sem que isso ameace suas moedas. Na outra ponta, países de moeda fraca e grandes restrições cambiais vivem dolarização de fato, com fuga de capitais escondidos em peças íntimas e dólares depositados no popular colchónbank.

Se alguma crítica pode ser feita à nova lei cambial, é ter sido tímida. Poderia, por exemplo, ter acabado de vez com a proibição da compensação cambial privada ao invés de autorizá-la apenas nas hipóteses previstas em regulamento do Banco Central. Ou ampliado a possibilidade de realização de câmbio sem interveniência de agente autorizado. Talvez tenha sido o preço a pagar pela aprovação relativamente rápida. O ótimo seria inimigo do bom.

O mercado aguarda ansioso a regulamentação que o Banco Central e o CMN devem expedir durante o ano de 2022.

Imagem: Karolina Grabowska / Pexels

Autores L&S

Luiz Roberto de Assis

Luiz Roberto de Assis

Sócio

Outras edições

Política restritiva sobre rankings

Não participamos de ou damos informações a publicações classificadoras de escritórios de advocacia (rankings) com uso de informações confidenciais de clientes. Também não pagamos por espaço editorial ou publicitário. Isso pode levar a omissão ou distorção de informações relativas a nossas atividades em tais publicações. Assim, a visita a nosso site é a maneira mais adequada de conhecer nossas atividades.
developed by asteria.com.br designed by pregodesign.com.br
^