A repressão administrativa a ilícitos de pessoas jurídicas difere dos modelos clássicos de responsabilidade baseados na demonstração de culpa. Na Lei de Defesa da Concorrência (nº 12.529, de 2011), e na Lei Anticorrupção (nº 12.846, de 2013), a responsabilidade é objetiva, prescindindo da caracterização de culpa ou dolo dos indivíduos que atuam como representantes ou em prol da pessoa jurídica.
A responsabilidade objetiva garante maior eficácia ao sistema de sanção, pois dispensa a identificação precisa da cadeia de responsabilidade e das ações individuais no interior da pessoa jurídica, o que pode ser complexo e mesmo inviável.
A responsabilização pelo ilícito exige, porém, a demonstração de nexo de causalidade com a organização empresarial. Prescinde-se de culpa ou dolo, mas não da relação causal entre o ilícito e condutas ou omissões de pessoas físicas relacionadas às atividades desenvolvidas no âmbito da empresa. Se houve pagamento de propina é preciso demonstrar que foi feito por empregado ou terceiro - como um representante comercial - no contexto e em benefício de dada atividade empresarial.
As leis citadas também estendem seu alcance a pessoas jurídicas não diretamente envolvidas na conduta. Há previsão de responsabilidade solidária no âmbito do grupo econômico, o que garante maior eficácia à repressão aos ilícitos no contexto de grupos complexos, nos quais se sobrepõem múltiplas pessoas jurídicas, distintas sob o aspecto formal, mas sujeitas a um mesmo direcionamento em sua atuação.
Na Lei nº 12.529, de 2011, a solidariedade é prevista nos seguintes termos: serão solidariamente responsáveis as empresas ou entidades integrantes de grupo econômico, de fato ou de direito, quando pelo menos uma delas praticar infração à ordem econômica. Regra semelhante consta da Lei nº 12.846, de 2013. Afirma que as sociedades controladoras, controladas, coligadas ou, no âmbito do respectivo contrato, as consorciadas serão solidariamente responsáveis pela prática dos atos previstos nesta lei.
Essas regras são por vezes aplicadas de forma literal e automática a partir da mera constatação da existência de um grupo econômico. Mas se a própria responsabilidade objetiva não prescinde da identificação da relação entre o ilícito e ações ou omissões atribuíveis à pessoa jurídica, a solidariedade dentro do grupo tampouco pode surgir sem que esteja presente essa relação.
Admitir o contrário faria com que as sanções alcançassem aqueles que não se beneficiam ou não têm meios de impedir o ilícito, o que é incompatível com o princípio de que a pena não deve ir além da pessoa do infrator (artigo 5º, XLV, CF).
Implicaria, por exemplo, a responsabilização de sociedade por atos ilícitos praticados no âmbito de sua controladora ou daquela que detém mais de 20% de seu capital sem controle. Ou responsabilizar sociedades distintas apenas porque estão sob controle comum. Essas situações não fazem o menor sentido, sob qualquer aspecto em que se analise a questão.
A controlada e a coligada, no exemplo acima, não têm qualquer capacidade de intervir nas atividades da outra sociedade. A situação torna-se ainda mais absurda em contexto no qual não há plena identidade de sócios entre essas distintas sociedades e as repercussões patrimoniais das sanções acabariam por atingir quem sequer poderia ter algum benefício com o ilícito ou ter agido para evitá-lo.
O regime de responsabilidade em questão não visa apenas facilitar a atividade repressiva das autoridades. Esse critério não se prestaria, isoladamente, a justificar um sistema de sanção, exceto em regimes autoritários. A responsabilização em base objetiva dirige-se àquele que tem condições de controlar e afastar a possibilidade de ocorrência do ilícito. A pessoa jurídica responde objetivamente pelo ilícito por falha na organização da sua atividade empresarial ao deixar de adotar medidas adequadas de contenção do risco de ocorrência do ilícito.
É coerente com nosso sistema de responsabilidade sancionar aquele que tinha condições de conter o risco de ocorrência do fato que se quer evitar. A pessoa jurídica, por meio de sistemas de controle interno, tem meios para impedir ou reduzir significativamente o risco de ocorrência do ilícito no âmbito de sua atividade. É a falha nesse controle de risco que fundamenta a responsabilização. Impõe-se à organização empresarial, assim, a necessidade de se estruturar de forma a controlar tal risco.
A solidariedade no grupo econômico deve ser compreendida sob o mesmo parâmetro. A controladora tem meios de impor e exigir da controlada sistemas de controle do risco em questão. Se não o faz, é razoável que possa responder solidariamente pelo ilícito. O inverso não faz sentido e não há como justificar a solidariedade em tais casos, a não ser a partir de critérios arbitrários incompatíveis com nosso regime constitucional. A justificativa da regra não pode simplesmente ser a de que “alguém tem que pagar a conta” ou de que deve ser fácil aplicar a sanção.
Link para o texto no Valor Econômico