Repetição de tributo mantido por voto de qualidade
Texto publicado originalmente no JOTA
É direito do contribuinte pagar crédito tributário mantido por voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) sem incidência dos juros, e pleitear a restituição do tributo ao Judiciário. O embaraço criado pela Receita Federal do Brasil (RFB), ao dispor que o pagamento nesse contexto implica “confissão extrajudicial irrevogável e irretratável da dívida”, não encontra amparo legal.
Quando do reestabelecimento do voto de qualidade no Carf pela Lei 14.689/23, duas das contrapartidas negociadas entre o Ministério da Fazenda e a OAB, posteriormente referendadas pelo Congresso Nacional, foram as de que: (1) as multas exigidas seriam extintas quando o processo fosse resolvido favoravelmente à Fazenda pelo voto de qualidade (§ 9º-A do art. 25 do Decreto 70.235/72); e (2) havendo manifestação do contribuinte para pagamento do crédito mantido por voto de qualidade no prazo de 90 dias da decisão definitiva, os juros também seriam extintos. Com isso, conferiu-se ao contribuinte o direito de pagar apenas o principal do crédito, que ainda poderia ser parcelado em até 12 meses (art. 25-A do Decreto 70.235/72).
Ao regulamentar este segundo dispositivo, a RFB estipulou que a manifestação do contribuinte para pagamento implicaria “confissão extrajudicial irrevogável e irretratável da dívida” (Instrução Normativa RFB 2.167/23).
Admitindo-se como válida a premissa de que o pagamento implica confissão, o contribuinte se veria limitado na abrangência da discussão que poderia levar ao Judiciário, com o objetivo de reconhecer como indevidos os valores recolhidos e pleitear a restituição do indébito. O Superior Tribunal de Justiça (STJ), quando do julgamento do Tema Repetitivo 375, decidiu que a confissão dívida não obsta o questionamento judicial dos aspectos jurídicos da obrigação tributária (e.g.: decadência, ilegalidade do processo de lançamento, ilegitimidade da norma instituidora do tributo), mas, em regra, as matérias fáticas não podem ser rediscutidas diante do efeito da confissão.
Mas não há de se admitir como válida tal consequência. O art. 165 do Código Tributário Nacional (CTN) traz a regra geral aplicável à repetição de indébitos tributários. Dispõe, de forma clara, que o mero pagamento não constitui confissão de dívida, assegurando ao contribuinte a restituição total do valor pago indevidamente.
Por força da reserva legal, quando o legislador quis excepcionar a regra geral, foi obrigado a fazê-lo expressamente por lei. É o caso do parcelamento ordinário (art. 12 da Lei 10.522/02), do Refis da Crise (art. 5º da Lei 11.941/09), do Programa Especial de Regularização Tributária – PERT (art. 1º, § 4º, I, da Lei 13.496/17), da transação tributária (art. 3º, § 1º, da Lei 13.988/20). Todas estas normas – que são leis, e não decretos ou meros atos administrativos – estabelecem, expressamente, que a adesão implica confissão dos créditos tributários negociados.
Nada parecido se verifica no art. 25-A do Decreto 70.235/72. Esse dispositivo não exige do contribuinte a confissão do débito para que obtenha a exclusão dos juros, assim como não dispõe que o pagamento nesse contexto implica confissão. A exclusão dos juros é mera consequência do pagamento de crédito mantido por voto de qualidade dentro do prazo legal.
O mesmo ocorre, por exemplo, com a redução de 50% da multa de ofício no caso de pagamento no prazo de 30 dias contados do lançamento (art. 6º da Lei 8.218/91). Trata-se de incentivo ao recolhimento de crédito tributário que não retira do contribuinte o direito de rediscutir de forma ampla o crédito no Judiciário.
Portanto, qualquer pagamento feito no contexto do art. 25-A do Decreto 70.235/72 é pagamento imotivado passível de restituição.
Por fim, ao reinstituir o voto de qualidade, o governo tinha um objetivo em mente, qual seja, aumentar a arrecadação. Isso pode ser visto na exposição de motivos que acompanhou o projeto de lei, onde ficou evidente a preocupação com a perda de receita desde a instituição da regra segundo a qual o empate no Carf favoreceria o contribuinte (do art. 19-E da Lei 10.522/02), colocando em risco a arrecadação anual de R$ 59 bilhões.
A possibilidade de o contribuinte recolher o principal, sem juros, com posterior ida ao Judiciário discutir a exigibilidade do crédito é compatível com o propósito da lei, pois estaria garantida a arrecadação imediata almejada pelo governo e, ao mesmo tempo, o exercício do direito de petição pelo contribuinte. Aliás, colocada nesses termos, a norma poderia provocar o almejado incremento arrecadatório decorrente do aumento da atratividade do benefício conferido pelo Legislador. Afinal, o contribuinte que se encontre na situação debatida pode também optar por não pagar e discutir judicialmente seu crédito sem a necessidade de garantia (art. 4º da Lei 14.689/23), o que poderia levar à postergação do recolhimento do tributo.
Considerando esse cenário, o pagamento do crédito decidido por voto de qualidade, com exclusão de juros, é direito do contribuinte, não implica confissão do crédito e permite a rediscussão ampla no Judiciário visando ao reconhecimento da inexigibilidade do valor pago e a repetição do indébito.