“Não importam os meios, importam os fins”, diz o adágio atribuído supostamente a Maquiavel, porquanto condizente com sua filosofia política.
Ainda que persistam dúvidas acerca da autoria dessa frase, na seara tributária o provérbio nunca foi tão eloquente, sobretudo no exame do fato gerador do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS).
De fato, a distinção entre atividade-meio - assim entendida aquela desenvolvida para que se possa prestar determinado serviço -, e a atividade-fim, é fundamental para compreensão do aspecto material da hipótese de incidência do referido tributo.
A polêmica em torno do tema vem ganhando tom dramático em face da voracidade das prefeituras municipais, que em tudo enxergam um fato tributável, e por motivo óbvios, elegem como alvo preferencial as instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional.
Apenas para ilustrar, fiquemos com o exemplo do item 15 da lista anexa à Lei Complementar nº 116/03, que trata de serviços prestados por tais instituições, cujo subitem 15.05 refere-se a “Cadastro, elaboração de ficha cadastral, renovação cadastral e congêneres, inclusão ou exclusão no Cadastro de Emitentes de Cheques sem Fundos – CCF ou em quaisquer outros bancos cadastrais.”
Até onde se sabe, nenhuma instituição financeira presta a terceiros serviços de levantamento de informações, comumente designados de “serviços de cadastro”. Se o fazem, é não apenas no seu próprio interesse, evitando que seu patrimônio seja afetado por créditos de má qualidade, mas também do Banco Central do Brasil, órgão fiscalizador do sistema bancário, que exige dessas instituições cuidado e prudência na concessão de empréstimos para proteger o patrimônio dos depositantes, credores e investidores em geral.
É claro que para fazer o levantamento, filtragem e processamento de informações, os bancos são obrigados a contratar pessoal especializado, manter atualizado um de bancos de dados complexo e volumoso, e adquirir equipamentos modernos e custosos. Nada mais razoável que esse valor lhes seja reembolsado.
Trata-se, pois, de mero ressarcimento de custos e despesas incorridas pelas instituições financeiras, e não de prestação de serviços decorrentes do exercício de uma atividade-meio, indispensável para que possa exercer sua atividade-fim (concessão de crédito).
Apesar disso, as prefeituras têm insistido em conferir caráter autônomo à essa atividade, como se ela fosse desenvolvida de forma isolada e interessada, e não como uma mera etapa exigida para o exercício do objeto social.
Inconformados com a cobrança, bancos e corretoras têm recorrido ao Poder Judiciário, argumentando que a atividade-meio e atividade-fim não se confundem, e por essa razão, o ISS não seria exigível, levando a discussão aos Tribunais Superiores.
O Superior Tribunal de Justiça mostrou-se categórico ao declarar a impossibilidade de o fisco “decompor um serviço porque previsto, em sua integridade, no respectivo item específico da lista da lei municipal nas várias ações-meio que o integram, para pretender tributá-las separadamente, isoladamente, como se cada uma delas correspondesse a um serviço autônomo, independente. Isso seria uma aberração jurídica, além de construir-se em desconsideração à hipótese de incidência do ISS.” (REsp 888.858/ES). Além disso, consolidou, quando do julgamento do AREsp. 478.476/RJ, entendimento de que “não incide o ISS sobre os serviços de atividade-meio, indispensáveis ao alcance da atividade-fim”.
O próprio Supremo Tribunal Federal também se manifestou já há muito sobre o tema, e afastou a exigência do imposto sobre essa atividade, declarando tratar-se de serviço prestado no interesse da própria instituição financeira, e não de terceiros (RE 105.844).
Importante notar que a mera inserção de determinada atividade na lista de serviços tributáveis pelo ISS a que se refere a Lei Complementar nº 116, de 2003, não é suficiente para exigibilidade do imposto municipal. Em outras palavras, o simples fato de denominar-se serviço não basta para dar ensejo ao lançamento, sendo necessário também que haja a sua prestação, assim entendida a que resulte de obrigação de fazer aventada com terceiros.
No caso específico de trabalho realizado “para si próprio”, é evidente a impossibilidade de existir qualquer obrigação de fazer contraída com quem não se qualifica como terceiro, o que afasta desde logo sua conceituação como serviço. Ademais, a absoluta ausência de conteúdo econômico e a falta de interesse comercial na realização da operação também impedem a qualificação como prestador de serviço.
A mesma lógica se aplica às operações que antecedem a liquidação de contratos de câmbio, tais como a conferência de documentos comerciais, a confirmação de ordens e de cartas de crédito, a edição, alteração, prorrogação, cancelamento e baixa de contratos de câmbio, e demais atividades previstas no subitem 15.13 da lista de serviços, imprescindíveis que são para que a operação final – a compra e venda de moeda estrangeira – possa ser viabilizada.
Cabe, no entanto, o alerta de que no âmbito processual, há manifestações do Judiciário pontuando que a questão versando sobre a natureza jurídica das atividades-meio não é meramente de direito, exigindo prova, mediante perícia técnica, de que elas constituem etapa intermediária e imprescindível para que as atividades-fim sejam viabilizadas, afastando a possibilidade de discussão da tese mediante mandado de segurança.
Esse intenso debate releva que embora persista a polêmica acerca da autoria do famoso provérbio imputado a Maquiavel, é inegável que a natureza dos meios, quando confrontada com a natureza dos fins, é essencial e determinante para efeitos tributários.
Link para matéria no Valor Econômico.
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