Albert Einstein dizia que um raciocínio lógico nos leva de A a B, com a ressalva de que a imaginação nos leva a qualquer lugar.
Decisões de nossa Suprema Corte revelam o acerto dessa teoria, e confirmam que a imaginação pode, sim, sobrepor-se à lógica, ao relativizar conceitos até então tidos como sólidos e consistentes.
Tomem-se como exemplo os julgados que versaram sobre a definição de serviços para fins tributários, ocasião em que o tribunal reanalisou a atividade de locação de bens móveis para decidir se sobre ela incidiria o Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS).
Até então, prevalecia a tese de que essa atividade constituiria serviço tributável, fundada na premissa de que não se trataria de mero uso e o gozo da coisa, mas de sua utilização na prestação de um serviço.
Ao rever a matéria no Recurso Extraordinário 116.121, o Ministro Marco Aurélio, que proferiu o voto vencedor, tratou de seguir a lógica, elegendo como ponto de partida o conceito de serviço a que se refere a Constituição Federal, e construindo-o à luz do direito privado, como exige o art. 110 do Código Tributário Nacional.
Encontrou base no art. 1.188 do Código Civil Brasileiro que vigorava à época, segundo o qual "na locação de coisas, uma das partes se obriga a ceder à outra, por tempo determinado, ou não, o uso e gozo de coisa não fungível, mediante certa retribuição."
Com apoio nessa disposição, concluiu que por exigir a cessão temporária de um bem, a locação encerra obrigação de dar, e não de fazer, e como tal, não poderia ser alcançada pelo ISS.
A votação foi apertada, e a tese venceu pela diferença de um único voto. Não faltaram, naquele julgamento, críticas à simplicidade da interpretação adotada, nem alusões aos contratos de arrendamento mercantil, com os quais a locação não guarda identidade plena.
Houve, inclusive, quem alegasse que a exegese do termo “serviço” deveria ser feita à luz da realidade econômica, e não do direito privado, e que o fato de o locatário ser obrigado a manter a coisa no estado e garantir o seu uso pacífico configuraria comportamento próprio da obrigação de fazer, como se ele – locatário - estivesse prestando serviços ao locador, e não o contrário.
Embora tenha sido objeto de súmula vinculante (Súmula nº 31, aprovada em 2.010), o entendimento de que a prestação de um serviço deve necessariamente corresponder a uma obrigação de fazer foi, pouco a pouco, desnaturado pelo Supremo, levando o contribuinte de volta à escuridão e à consequente insegurança jurídica.
O primeiro golpe na tese foi desferido quando do julgamento do RE 547.245, de lavra do Ministro Eros Grau, quando ficou assentado que o leasing financeiro e o lease-back seriam tributáveis pelo ISS, visto que os contratos do tipo teriam como núcleo o financiamento, não revelando uma obrigação de dar, e sim de fazer, concluindo que "financiamento é serviço, sobre o qual o ISS pode incidir".
Curioso notar que nessa decisão foram manifestadas posições que já antecipavam, profeticamente, o que se decidiria anos mais tarde sobre a tributação do software de prateleira, ocasião em que a jurisprudência pacífica do STF versando sobre seu tratamento fiscal sofreu também drástica guinada, ao considerá-lo como serviço tributável pelo ISS.
O uso indiscriminado da imaginação para solução da controvérsia não parou por aí, e ficou evidente quando o acórdão introduziu a inovadora ideia de que o leasing encerraria uma atividade de aproximação na qual participam apenas duas partes ("No arrendamento mercantil financeiro há, por exemplo, a prestação de serviços de aproximação entre quem tem disponibilidade de recursos e quem deles necessita, não de forma geral como num empréstimo, mas com o objetivo específico de garantir acesso ao uso de um bem", e em seguida acrescentar-lhe uma terceira parte, qual seja, o fornecedor do bem, que não integra o contrato nem mantém qualquer relação jurídica direta ou indireta com o arrendatário, aduzindo que "A arrendadora atua como intermediária na criação de uma vantagem produtiva e na aproximação de interesses convergentes, ao adquirir o bem do fornecedor a pedido da arrendatária." (grifos e destaques no original).
Essas manifestações não são apenas criativas, mas enigmáticas, ao atribuírem à atividade do leasing a natureza de prestação de serviço de “administração de financiamento” - concedido, nesse caso, pelo próprio administrador, como se fosse ele uma terceira pessoa na relação jurídica entre arrendador e arrendatário.
Além de obscuro, o acórdão é temerário, pois ao afirmar que financiamento é serviço, dá margem à exigência do ISS sobre operações financeiras quaisquer que sejam, invadindo competência reservada à União Federal e encorajando as prefeituras - cujas receitas encontram-se combalidas por razões diversas - a aventurar-se em águas revoltas.
Os frágeis fundamentos utilizados para fugir à lógica mostram que o Supremo abandonou, de vez, o parâmetro que permitia distinguir, com precisão, o que seja serviço, abrindo espaço para interpretações inusitadas que levaram à exigência do ISS sobre atividades que com ele não guardam qualquer relação.
Foi o que ocorreu nos julgamentos em que se examinou a natureza jurídica dos contratos de franquia (RE 603.136-RJ), de assistência e de seguro à saúde (RE 651.703-PR), e de software de prateleira (ADIs 1.945-MT e 5.695-MG). O desfecho desses casos não chegou a provocar espanto, porquanto assentados nas mesmas premissas que levaram a Suprema Corte a rejeitar a distinção entre as obrigações de dar e de fazer como baliza segura para fins tributários, transformando em letra morta o art. 110 do CTN.
Paradoxalmente, e a pretexto de fazer valer a teoria evolucionista do Direito, o Supremo acabou confirmando o que disse Einstein, infirmando a ideia de que a linha reta é a menor distância entre dois pontos, e abandonando o contribuinte à deriva em meio à indesejável turbulência fiscal.
Imagem: Tapanakorn