Meios de pagamento, fraudes e dedutibilidade fiscal
Avanços tecnológicos que promoveram diversificação e florescimento de novas soluções nos mercados de contas e meios de pagamento digitais, facilitadoras de pagamentos, credenciadoras e subcredenciadoras de cartões, trazem consigo também fragilidades que abrem espaço para o cometimento de fraudes por terceiros, impondo perdas significativas às empresas atuantes em tais mercados.
Parte dessas perdas pode ser recuperada por meio de deduções das bases de cálculo do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), apuradas no regime do lucro real, com respaldo em regra pouco lembrada, mas presente na legislação federal já há quase sessenta anos e atualmente refletida no artigo 376 do Regulamento do Imposto de Renda de 2018 (RIR/18).
De acordo com essa regra, são dedutíveis como despesas os “prejuízos por desfalque, apropriação indébita e furto, por empregados ou terceiros, quando houver inquérito instaurado nos termos da legislação trabalhista ou quando apresentada queixa perante a autoridade policial”.
As hipóteses nas quais o contribuinte pode aplicar a regra são amplas. Enquanto apropriação indébita e furto são condutas específicas, tipificadas como crimes pelo Código Penal, desfalque é um termo genérico que não descreve uma conduta específica, sem definição em lei ou regulamentação. Como tal, ainda que não seja de conhecimento do contribuinte o enquadramento da conduta em tipo penal específico, está autorizada a dedutibilidade de perdas de naturezas diversas, desde que (i) ocasionadas por condutas fraudulentas de empregados ou terceiros[1], (ii) sejam reportadas à autoridade policial ou seja aberto inquérito trabalhista, e (iii) as perdas não estejam cobertas por seguro, não tenham sido indenizadas nem tenha havido reconhecimento judicial do direito creditório contra quem deu causa ao prejuízo no mesmo exercício em que incorrida a perda.
É o caso, por exemplo, das perdas decorrentes de fraudes eletrônicas com contas de pagamento e aquelas cometidas mediante aproveitamento ilícito de falhas tecnológicas de aplicativos, enquadráveis em crimes diversos. O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF)[2] vem autorizando a dedução das perdas efetivas com fraudes causadas por terceiros ou empregados, independentemente do enquadramento penal específico, contanto que seja atendido o requisito legal de notificação da autoridade policial.
E nem poderia ser diferente, pois enquadrar a conduta fraudulenta em tipos penais específicos é tarefa do Ministério Público, e fazer o contribuinte aguardar anos até o trânsito em julgado de ação penal, quando seria definido se houve furto, apropriação indébita, estelionato, ou outro crime, inviabilizaria o cumprimento do objetivo da norma, que é autorizar a dedução imediata dessas perdas.
Basta, portanto, que a empresa seja capaz de detectar e provar a ocorrência das fraudes praticadas por empregados ou terceiros, mensurar os prejuízos patrimoniais/financeiros efetivamente sofridos e comunicar o ocorrido à autoridade policial por meio de boletim de ocorrência, queixa ou instauração de inquérito trabalhista, para que possa deduzir as perdas integral e imediatamente das bases de cálculo do IRPJ e da CSLL.
Conforme esclarecido no Parecer Normativo (PN) nº 50, de 9 de maio de 1973, da Coordenação do Sistema de Tributação (CST), é necessário também que a empresa tenha incorrido em efetivo prejuízo no exercício, o que significa que as perdas não poderão ser deduzidas se estiverem cobertas por seguro ou se tiverem sido indenizadas/compensadas ou tenha havido reconhecimento judicial do direito creditório contra quem deu causa ao prejuízo no mesmo exercício em que incorrida a perda.
Caso a empresa obtenha indenização ou qualquer forma de compensação das perdas (incluindo reconhecimento judicial definitivo de direito creditório contra quem lhes deu causa) em exercícios posteriores ao do prejuízo, poderá considerar as perdas dedutíveis no exercício em que forem incorridas, devendo seu valor ser oferecido à tributação somente se e quando da efetiva recuperação da perda.
A correta aplicação da regra do atual art. 376 do RIR/18 ganha importância na mediada em que o Fisco possui entendimento firmado no sentido de que não se aplica às perdas com fraudes a regra geral de dedutibilidade de despesas operacionais para fins de IRPJ, contida no art. 311 do RIR/18. Segundo o Fisco, perdas decorrentes de fraudes, ainda que recorrentes, não são qualificáveis como despesas operacionais, assim definidas aquelas usuais ou normais no tipo de operações ou atividades da empresa, não computadas nos custos, necessárias à atividade da empresa e à manutenção da fonte produtora. Também há precedentes do CARF nesse mesmo sentido. Em caso recente, por exemplo, o CARF apontou que certas despesas com fraudes contabilizadas por um banco como operacionais somente poderiam ser deduzidas conforme a regra do art. 376.[3]
A hipótese de dedução aqui analisada também não se confunde com a dedutibilidade das perdas nos recebimentos de créditos, sujeita a regras específicas e condicionada ao cumprimento de diversos requisitos legais (arts. 347 a 351 do RIR/18)[4]. Tal dedutibilidade decorre do inadimplemento de obrigações de terceiros devedores, e não de fraudes, desfalques, furtos ou apropriação indébita.
Mas os desfalques e as perdas relacionadas ao recebimento de créditos não são categorias estanques, podendo essas ser imediatamente deduzidas sem acatamento dos requisitos do parágrafo anterior caso seja constatado que foram causadas por condutas fraudulentas de empregados ou terceiros, observadas as condições aqui discutidas. Exemplo seria a negligência na cobrança de dívida em benefício de devedor que desvia os recursos em benefício de terceiros ligados ao administrador negligente da entidade prejudicada, gerando também inadimplemento.[5]
Assim, esforços voltados à detecção, mensuração e comprovação de prejuízos sofridos, bem como à notificação das autoridades policiais, dando assim o respaldo necessário à dedutibilidade integral e imediata das respectivas perdas, podem representar alívio econômico relevante às empresas.
[1] Conforme esclarece o Parecer Normativo (PN) nº 50, de 9 de maio de 1973, da Coordenação do Sistema de Tributação (CST), a autoria da conduta que levou à perda não pode ser imputada a sócio ou proprietário da sociedade, sob a alegação de não se tratar de empregado ou terceiro em relação à sociedade.
[2] A título exemplificativo, nos Acórdãos n. 1401-004.201, 1402002.753 e 1302001.544.
[4] Tais requisitos envolvem por exemplo valor dos créditos; período decorrido desde o seu vencimento; existência ou não de garantias; se houve declaração de insolvência do devedor ou se o devedor foi declarado falido ou é pessoa jurídica em concordata ou recuperação judicial; se foram iniciados e/ou mantidos procedimentos judiciais para o recebimento do crédito, arresto de garantias ou cobrança administrativa.
[5] As instituições de pagamento, apesar de não poderem realizar atividade privativa de instituição financeira captando e emprestando recursos, nos termos do artigo 6º, § 2º, da Lei nº 12.865, de 9 de outubro de 2013, são frequentemente credoras de fluxos de pagamentos a elas devidos. Por exemplo, credenciadoras que têm a haver recursos de emissoras de cartões, ou emissoras que têm créditos contra os usuários desses meios de pagamento.
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