Atualmente, o Congresso Nacional se divide entre uma “Frente Parlamentar por um Brasil sem Jogos de Azar” e uma corrente de parlamentares que defende aprovação de projeto de lei legalizando jogos de azar no país. Essa polêmica ganhou novo capítulo após denúncias de esquemas de manipulação de resultados de futebol por meio de apostas esportivas. Mas como ficam as empresas intermediárias de pagamentos a casas de apostas? A facilitação desses pagamentos é ilícita? Elas podem ser chamadas a responder por esquemas ilegais de apostas?
Regulação dos jogos de azar
Antes de responder às questões acima, é preciso detalhar como os jogos de azar são regulados no Brasil. O estabelecimento ou a exploração de jogos de azar em lugar público ou acessível ao público é contravenção penal, passível de prisão e multa. Há exceção a isso na Lei 13.756/18, que criou modalidade lotérica denominada “aposta de quota fixa”, na qual fica pré-definido quanto o apostador pode ganhar em caso de acerto do prognóstico de um evento esportivo (o dito mercado de bets). A regulamentação da Lei 13.756/18 vem sendo discutida pelo governo federal e permitirá a exploração comercial do mercado de bets mediante outorga do Ministério da Fazenda.
Mesmo antes dessa regulamentação, apostas vêm sendo feitas por brasileiros e movimentam mercado de alto valor, que patrocina 19 dos 20 clubes da série A do Campeonato Brasileiro. Mas, para contornar a configuração de contravenção punível na lei brasileira, as apostas são realizadas por meio de sites hospedados no exterior, geridos por empresas sem presença física no Brasil. Nesses casos, as apostas são colocadas em “banca” virtual localizada no país em que está hospedado o site e no qual o jogo seja permitido. Situação semelhante à da aposta dentro de cassinos em Mônaco ou Las Vegas.
O Código Penal considera praticado o ilícito no lugar em que ocorreu a ação, “bem como onde se produziu ou deveria produzir-se o resultado”. Assim, no caso de apostas por meio dessas plataformas no exterior, também é necessário questionar se haveria resultado no Brasil que determinasse a aplicação da lei penal nacional, mesmo que a conduta fosse realizada fora do país.
A resposta é negativa. Uma aposta no exterior feita por um brasileiro pode até gerar efeitos naturalísticos no Brasil, como ganhos ou prejuízos financeiros. Porém, o resultado de que trata o Código Penal não é o efeito naturalístico da conduta, e sim o efeito prescrito como crime: o ato de apostar. Este, terá ocorrido no exterior. Dessa forma, não há contravenção no caso de apostas em sites hospedados em servidores estrangeiros.
Intermediários de pagamentos
Para permitir que brasileiros enviem dinheiro a esses sites, é comum a contratação de facilitadores internacionais de pagamentos, hoje denominados “prestadores de serviços de eFX”. Eles recebem valores de seus clientes em reais e fecham operações de câmbio com instituição autorizada a operar no mercado de câmbio. Os recursos obtidos em moeda estrangeira são utilizados para a aquisição de bens e serviços no exterior, incluindo a realização de apostas nos sites. Eventualmente, esses intermediários também gerenciam contas de pagamento pré-pagas de seus usuários locais, atuando como instituições de pagamento e sujeitando-se a normas regulamentares que disciplinam essa atividade.
De mais importante, tais intermediários não administram ou organizam jogos de azar e não oferecem publicidade desses sites. São meros prestadores de serviços de pagamentos, que processam transferências para operacionalizar as aquisições.
Nesses casos, não há vinculação jurídica entre a sua atuação e a relação comercial estabelecida entre os apostadores e os sites. Aliás, a natureza das atividades de eFX e sua consequente desvinculação das compras e vendas no exterior é reforçada pela regulação do Banco Central. Segundo essa, o câmbio contratado pelo eFX não tem a natureza da operação subjacente entre apostador e site, devendo ser utilizado código distinto daquele que seria empregado pelo apostador na hipótese de remessa direta dos recursos ao exterior para aquisição de bens e/ou serviços fora do país.
Assim, um eFX não incide em contravenção penal pelo fato de facilitar pagamentos a sites de aposta. Tampouco incorre em crimes de incitação ou apologia à prática de crimes. Primeiro, porque os referidos tipos penais limitam-se à incitação ou apologia da prática de crimes, ao passo que jogos de azar são meras contravenções penais. Segundo, porque a simples instrumentalização de pagamentos não se confunde com incentivo, fomento ou instigação aos jogos de azar. Terceiro, porque a realização de apostas em plataformas hospedadas no exterior, onde o jogo seja permitido, não configura crime ou contravenção penal punível pela lei brasileira, como antes explicado.
A falta de vinculação jurídica entre a atividade de instrumentalização de pagamentos e a relação dos apostadores com os sites explica também a ausência de responsabilidade do prestador de serviços de eFX por eventual manipulação de resultados esportivos por meio de apostas. Se inexiste essa vinculação, que dirá com os eventos esportivos objeto dessas apostas. Resumidamente, a diligência do prestador de serviços de eFX limita-se à verificação da identidade de seus clientes e da natureza da operação cambial pretendida; no caso, a aquisição de produtos e serviços no exterior.
Essas conclusões sobre a legalidade das transações conduzidas pelo eFX também são importantes para as suas contrapartes em operações de câmbio (como bancos e corretoras de câmbio). Afinal, essas devem estar aptas a demonstrar a fundamentação econômica das operações de câmbio que realizaram. O que passa pela legalidade do negócio jurídico subjacente.
Como tanto as atividades de eFX quanto as remessas para realização de apostas fora do país são lícitas, não há qualquer objeção ao fechamento de operações de câmbio com prestadores de serviços de eFX pelo simples fato de eles facilitarem remessas com a finalidade de participação de seus clientes em jogos de azar no exterior.
Em meio às discussões sobre a regulamentação dos jogos de azar no Brasil, apostas esportivas têm se concretizado por meio de plataformas hospedadas no estrangeiro. A facilitação de pagamentos a essas plataformas é atividade lícita, bem como a conclusão de operação de câmbio com a finalidade de remeter recursos a esses sites. Prestadores de serviços de eFX não incorrem em contravenção penal por instrumentalizar essas remessas e não deveriam ser chamados a responder por eventual participação de apostadores em esquemas de manipulação de eventos esportivos, por ausência de vínculo juridicamente relevante com as atividades de pagamento.
Uma vez aprovada regulamentação do mercado de bets no Brasil, como indicou o governo federal, a exploração comercial dessas atividades no país poderá “nacionalizar” fluxos de pagamentos associados às apostas. Novamente, os prestadores de serviços de pagamento locais que viabilizarem essas transferências não incorrerão em qualquer ilegalidade. Ainda mais em vista da licitude dos negócios jurídicos subjacentes.
Evidente que, mesmo que exigida a outorga do Ministério da Fazenda para essas casas de apostas, essa necessidade de habilitação não deveria se estender aos meros prestadores de serviços de pagamento, que não exploram, administram ou organizam jogos de azar. Pensar o contrário seria semelhante a exigir de credenciadoras de cartões o registro na Agência Nacional de Petróleo (ANP), simplesmente porque viabilizam pagamentos a postos de gasolina.
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