Indústria do petróleo: porque deveriam ser revistas as regras para cálculo das participações especiais

O risco de sanções financeiras e administrativas, e de dano à reputação, com frequência leva empresas a reportar voluntariamente à autoridade competente o eventual descumprimento de obrigações legais, pagando as multas aplicáveis. É o que se vê historicamente em matéria tributária, e cada vez mais nas áreas antitruste e anti-corrupção.

Não será surpresa se isso também passar a ocorrer na indústria de petróleo e gás natural, com relação ao recolhimento das chamadas participações especiais. Essa perspectiva resulta da combinação de duas ordens de motivos. De um lado, a complexidade de cálculo das participações especiais, que resulta das regras aplicáveis às deduções admitidas, e as pesadas sanções aplicáveis a irregularidades em seu recolhimento. De outro, o escrutínio crescente de autoridades públicas com relação ao assunto, que tem por sua vez relação com o alto valor dos montantes em questão (R$24 bilhões recolhidos em 2020, R$ 16 bilhões apenas nos dois primeiros trimestres de 2021) e com a crônica crise fiscal do Estado brasileiro. 

Este texto discute a complexidade das regras aplicáveis ao recolhimento de participações especiais; os incentivos para que concessionários cogitem o saneamento voluntário de eventuais falhas no cumprimento das obrigações correspondentes; e a possível simplificação das normas em questão. Antes de fazê-lo, apresenta de forma sucinta o contexto da discussão, em três pilares: (i) o tratamento legal das participações especiais; (ii) as sanções previstas para a hipótese de descumprimento das regras aplicáveis a seu cálculo e pagamento; e (iii) o monitoramento de autoridades públicas quanto à correção de seu recolhimento. Como se verá, algumas das normas da Agência Nacional de Petróleo (ANP) que impõem sanções por irregularidades no recolhimento de participações especiais não têm amparo em lei, e quaisquer cobranças delas decorrentes seriam passíveis de questionamento judicial.

Cálculo da participação especial 

O campo das obrigações financeiras de concessionários de bens ou serviços públicos é a província por excelência de discussões complexas e valores vultosos, que com frequência resultam em contenciosos administrativos e judiciais. Ainda assim, possivelmente poucas obrigações financeiras relativas a contratos com o poder público rivalizam em complexidade e opacidade, e se prestam a tanta controvérsia, como o cálculo das participações especiais. Isso decorre da natureza intricada das normas aplicáveis às deduções admitidas em seu cálculo.

A participação especial é devida por concessionários, na forma do edital e do contrato respectivo, em casos de grande volume de produção ou de grande rentabilidade (caput do art. 50 da lei 9478/1997), e é aplicada sobre a receita bruta da produção, deduzidos os royalties, os investimentos na exploração, os custos operacionais, a depreciação e os tributos aplicáveis (parágrafo único do art 50). Ela compõe, ao lado dos royalties, do bônus de assinatura e do pagamento pela ocupação ou retenção de área, as chamadas participações governamentais da indústria do petróleo e gás natural (art. 45 da Lei 9.478/97). Na sua apuração são aplicadas alíquotas progressivas sobre a receita líquida da produção trimestral de cada campo, de acordo com a localização da lavra, número de anos de produção e o respectivo volume de produção fiscalizada (art. 22 do Decreto 2705/98, que define critérios para cálculo e cobrança das participações governamentais). 

O valor das participações especiais será apurado trimestralmente por cada concessionário, que deverá encaminhar à Agência Nacional de Petróleo (ANP) o demonstrativo de apuração de participação especial (art. 25 do Decreto 2705/98); esse demonstrativo é regulamentado pela Portaria 58/2001 da ANP.

O cálculo das participações especiais é complexo sobretudo porque admite, como apontado, a dedução dos investimentos feitos na exploração, custos operacionais, e depreciação. Essas deduções autorizadas são objeto da Resolução ANP nº 12/14.

O art 13 da Resolução ANP nº 12/14 dispõe que em cada período-base (trimestre), poderão ser deduzidos da receita bruta da produção de um dado campo:

    (i) gastos incorridos pelo concessionário nas atividades de exploração das jazidas de petróleo e gás natural, bem como nas de perfuração de poços da área concedida;

    (ii) gastos incorridos pelo concessionário nas atividades de desenvolvimento e de produção dos campos petrolíferos da área concedida;

    (iii) valores provisionados pelo concessionário, com prévia anuência da ANP, para cobrir as despesas futuras de abandono e de restauração ambiental;

    (iv) gastos efetivamente incorridos pelo concessionário em operações de abandono de poços e de desmobilização de instalações durante a fase de produção; inclusive os gastos com nacionalizações     dos equipamentos admitidos temporariamente no país, quando não já incluídos nos valores provisionados do item anterior.

Vê-se logo que se trata de universo potencialmente momentoso de despesas dedutíveis. Cada um desses grandes grupos de gastos é então detalhado em outros dispositivos da Resolução 12/14. A aplicação desse regime de deduções presta-se a dúvidas importantes e, sobretudo, a enormes dificuldades de fiscalização, e constitui ilustração acabada da noção de assimetria de informações; o poder público – no caso, a ANP - terá dificuldades importantes para aferir as informações prestadas pelo administrado.

Com efeito, alguns dos numerosos itens admitidos são específicos e exigiriam, para a verificação de sua propriedade, análise especializada – jurídica, contábil ou de outra natureza técnica. É o caso do valor das quebras ou perdas de estoque por deterioração, obsolescência ou pela ocorrência de riscos não cobertos por seguros, desde que comprovadas por certificado de autoridade competente, que especifique e identifique as quantidades destruídas ou inutilizadas e as respectivas razões (§ 2º do art. 19 da Resolução 12/14). Outros exigiriam verificação de natureza factual – é o caso de gastos com grandes manutenções programadas e os gastos com substituição de peças delas decorrentes; movimentações, deslocamentos e posicionamento de equipamentos, visando colocá-los aptos a produzir; pagamento de alvarás e licenças que não tenham exigência de renovação anual; e substituição de partes e peças, incluindo custo de instalação, observadas as regras contábeis vigentes (§2º do art. 17 da Resolução 12/14). Outros, ainda, são demasiado abertos e por isso mesmo podem prestar-se a questionamento, sempre que adotados pelo concessionário; é o caso de outros serviços contratados com terceiros (inciso IX do art. 17). 

Essa complexidade é acentuada por regras relativas a rateio dos gastos em questão quando instrumentais a mais de um campo produtivo.

Escrutínio de autoridades

Não surpreendentemente, os órgãos de controle passaram a debruçar-se sobre os procedimentos adotados pela ANP para fiscalizar o recolhimento de participações especiais. Tendo em vista a importância dos montantes em questão e as dificuldades financeiras que de forma crônica afetam o Estado brasileiro, em seus três níveis, não é razoável supor que esse interesse vá arrefecer, mas sim que o contrário ocorrerá.

Os montantes pagos a título de participações governamentais, gênero do qual são espécie as participações especiais, têm de forma geral sido objeto de especial atenção por autoridades públicas. A Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro instaurou este ano (Resolução n. 372/2021) CPI com o objetivo de (i) investigar a queda na arrecadação do estado referente às receitas compensatórias da exploração de petróleo e gás; (ii) apurar o pagamento pelas concessionárias exploradoras de petróleo de valores referentes às participações especiais; e (iii) apurar e investigar os abatimentos e a metodologia de pagamento aplicados pelas concessionárias exploradoras de petróleo. A investigação teve seu prazo prorrogado e está em curso; constitui talvez a instância mais visível do interesse da parte de autoridades públicas nessa matéria, mas não a única, nem tampouco a mais relevante.

Já em 2013 o Tribunal de Contas da União (TCU) emitiu recomendações à ANP quanto aos controles internos de fiscalização da produção de petróleo e gás natural e aos procedimentos de cálculo e pagamento (Acórdãos nº 657/2013 e 3253/2013). A auditoria realizada naquele momento alcançou a conclusão de que a ANP não realizava acompanhamento sistemático dos boletins mensais de produção (BMPs), instrumentos de acompanhamento utilizado para aferir a fidedignidade dos volumes de petróleo e gás natural produzidos e neles reportados; e que as ocorrências e os critérios que ensejam a realização das fiscalizações in loco não estão definidos detalhadamente e possibilitam que instalações não sejam fiscalizadas durante um período extenso. Segundo o TCU, esses e outros fatores de natureza semelhante impediam que o sistema de fiscalização atingisse plenamente seus objetivos.

Em 2016, a Controladoria Geral da União (CGU) propôs-se a examinar se a ANP possui procedimentos que permitam conhecer a estrutura contábil e de custos dos concessionários e confirmar as informações por eles declaradas. Concluiu que não - que não há, por exemplo, procedimento de análise das estruturas de custos que compõem os montantes de gastos exploratórios informados ou de seleção de itens de custo a serem comparados por meio de inspeção documental e física. Recomendou então (i) a elaboração de manuais/documentação aplicáveis aos processos de fiscalização da produção e sua validação, (ii) a dotação de recursos humanos necessários ao desempenho institucional do núcleo de fiscalização, (iii) o aperfeiçoamento dos controles internos relativos aos processos de fiscalização e validação da produção, e (iv) a atualização dos Manuais de Cálculo, Distribuição e Auditoria de Participação Especial (Relatório CGU nº 201603269/2016).

Os relatórios anuais de gestão da própria ANP, por sua vez, embora lacônicos sobre o tema, indicam aumento das ações de fiscalização.

Sanções aplicáveis

O recolhimento incorreto/insuficiente de valores de participações especiais enseja a aplicação de sanções financeiras importantes.

De forma geral, as sanções aplicáveis a infrações nas atividades relativas à indústria do petróleo e do abastecimento de combustíveis são objeto da Lei n. 9.847/99. O processo administrativo sancionador no âmbito da ANP, por sua vez, é objeto do Decreto n. 2.953/99; e as sanções especificamente relacionadas ao recolhimento de participações governamentais são objeto da Portaria ANP 234/2003.

Há importante incongruência entre as penalidades previstas nas diferentes normas, em especial entre a Portaria ANP 234/2003 e a Lei n. 9.847/99. 

As principais sanções previstas na Portaria ANP 234/2003 no que diz respeito ao tema aqui discutido são as seguintes:

    (i) multa de aproximadamente R$ 1,6 milhão (R$ 500 mil previstos originalmente na Portaria ANP 234/2003, corrigidos pelo IGP-DI, nos termos de seu art. 12) caso o concessionário prestar     declarações ou informações inverídicas, falsificar, adulterar, inutilizar, simular ou alterar registros e escrituração de livros e outros documentos exigidos no contrato de concessão ou na legislação     aplicável (art 5º., inciso XV da Portaria ANP 234/2003)

    (ii) juros de mora calculados pela Selic e multa de mora de 0,33% ao dia, limitada a 20% sobre o total devido no caso de atraso no pagamento (art. 11 da Portaria ANP 234/2003)

    (iii) no caso do concessionário deixar de pagar as participações governamentais de acordo com os montantes e prazos determinados, ou apurar os valores em desacordo com as normas     estabelecidas (art. 3º, XI da Portaria ANP 234/2003) e deixar de fazer o pagamento devido após o recebimento de advertência (caput do art. 4º. da Portaria ANP 234/2003), multa de 50% (não     recolhimento ou declaração inexata dos valores efetivos das participações governamentais) ou 100% (quando presente evidente intuito de fraude) sobre o montante devido (art. 6º., I e II,     respectivamente, da Portaria ANP 234/2003). Neste caso, a aplicação da sanção prescinde da consciência do concessionário quanto ao erro incorrido; por outro lado, a sanção não será aplicada se     houver pagamento após advertência da ANP. (O caput do art. 6º. leva a crer que a multa será aplicada ainda que haja pagamento após advertência; mas deve prevalecer a interpretação de que o     pagamento após a advertência afasta a multa de ofício por força da combinação do art. 3º, XI com o caput do art. 4º. da Portaria ANP 234/2003).

Essas sanções vão além do que prevê a Lei n. 9.847/99. Esta estipula multa no valor fixo entre R$20 mil e R$ 1 milhão para a hipótese do concessionário prestar declarações ou informações inverídicas, falsificar, adulterar, inutilizar, simular ou alterar registros e escrituração de livros e outros documentos (art. 3º., V da Lei n. 9.847/99); e multa (leve) no valor fixo entre R$5 mil e R$ 10 mil para o caso de deixar de registrar ou escriturar livros de acordo com a legislação aplicável (art. 3º., IV da Lei n. 9.847/99). Em caso de atraso no pagamento das multas, incidem juros de 1% ao mês e multa de mora de 2% ao mês (art. 4º. §2º. da Lei n. 9.847/99). No caso de o administrado abrir mão de recorrer da sanção imposta, haverá desconto de 30% do valor devido (art. 4º. §3º. da Lei n. 9.847/99).

A Lei n. 9.847/99 não comina multa ou juros para o caso de mora no pagamento das próprias participações especiais, nem tampouco multa de ofício. Eventual imposição dessas duas sanções com base nos dispositivos da Portaria ANP 234/2003 seria, nesse sentido, passível de questionamento judicial, por meio de mandado de segurança ou ação anulatória. Seria também possível pleitear judicialmente a restituição de valores eventualmente pagos a esse título.

O art. 8º., II da Lei n. 9.847/99 prevê a sanção de suspensão temporária de funcionamento de estabelecimento ou instalação em caso de segunda reincidência.

Possíveis ajustes na legislação aplicável

A regulamentação, como visto, é especialmente complexa. Sempre haverá dúvidas razoáveis sobre que gastos considerar. Durante cinco anos – prazo prescricional – o concessionário conviverá com justificado receio de impugnação pela ANP, com a consequente imposição de sanções. Dada a visibilidade crescente do assunto, e sua enorme relevância financeira, a Agência – ou os funcionários de sua área de fiscalização - podem ver-se tentados a ver irregularidades onde antes viam normalidade (ou para onde antes sequer olhavam). O risco de judicialização estará sempre presente. Não é, está claro, regime legal desejável – seja para o administrado, seja para o poder público.

Essa dificuldade não é peculiaridade da indústria de petróleo e gás natural, nem das participações governamentais. É antiga, e recorrente, a discussão sobre o modelo mais desejável para apuração de custos em setores regulados, em especial para fins de definição de regras tarifárias. O problema aqui é análogo: além da dificuldade de apuração dos custos efetivos da atividade, a fixação de tarifas – ou o cálculo de participações, no caso aqui discutido – a partir dessa referência não estimula ganhos de eficiência.

Solução respeitável seria fazer com que a apuração das PEs seguisse aquela do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ). A legislação tributária admite a dedução de despesas operacionais necessárias e usuais ao desenvolvimento das atividades-fim (art. 47 da Lei nº 4.506/64) e impõe ajustes (adições e exclusões) ao lucro líquido para apuração do lucro real tributável (arts. 260 e 261 do Regulamento do Imposto de Renda - Decreto nº 9.580/18).

Para tanto, seria preciso fazer coincidir a base de cálculo e o período de apuração, que seria anual também para as PEs. A declaração anual de informações e demonstração da apuração da base de cálculo do IRPJ (por meio da Escrituração Contábil Fiscal - ECF) valeria também para as PEs; e seriam aproveitados ainda os critérios e métodos para inspeção documental e física. Caso não fosse possível identificação perfeita entre as bases de cálculo, a própria ECF poderia conter ficha adicional que fizesse os ajustes pertinentes para apuração das PEs. Seria atribuída à RFB a fiscalização conjunta do IRPJ e das PEs, o que permitiria aproveitar a estrutura, enorme experiência e métodos de controle da RFB nessa matéria.

Solução alternativa seria adotar benchmark de empresa-referência que operasse de forma eficiente, com fator X de redução do custo presumido para incentivar ganhos de eficiência.

Self report?

Como lembrado na introdução deste artigo, com frequência crescente empresas têm procedido a investigações internas para identificar eventual descumprimento de obrigações legais de impacto relevante; e buscado sua solução espontânea. É o que vem ocorrendo em matéria antitruste e anti-corrupção. Diante das razões comentadas até aqui, o caminho da denúncia espontânea de irregularidades pelo administrado pode vir a fazer sentido com relação ao recolhimento de participações governamentais – notadamente de participações especiais.

As eventuais vantagens de fazê-lo não são desprezíveis. Notadamente, estancar o valor devido a título de juros de mora e a imposição da pesada multa de ofício prevista na Portaria ANP 234/2003. Como visto, esta última seria ilegal - mas haveria que enfrentar o indesejado caminho do questionamento judicial, com o tempo e custos a ele associados. Há, também, a vantagem – menos tangível, mas não desimportante - de evitar-se dano reputacional.

Qualquer que seja a decisão do administrado-concessionário, o que parece certo é a necessidade de simplificação da normativa aplicável. É o que evitaria importantes contenciosos, resguardaria a competitividade da indústria no Brasil; sem infirmar a arrecadação resultante dessa atividade, tão vital para o combalido erário público.

Link para matéria no JOTA.

Imagem: 12019/Pixabay

Autores L&S

Alexandre Ditzel Faraco

Alexandre Ditzel Faraco

Sócio
Bolívar Moura Rocha

Bolívar Moura Rocha

Sócio
Fernando Hamú Alves

Fernando Hamú Alves

Advogado
Isabela Schenberg Frascino

Isabela Schenberg Frascino

Sócia
Isabella Tanuy

Isabella Tanuy

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