Impactos da evolução da autorregulação e regulação do mercado de capitais no Direito Penal

O mercado de capitais brasileiro tem uma história de desenvolvimento robusto de interação entre regulação e autorregulação que permitem a adoção do chamado “direito penal mínimo”, que é uma das vertentes da lógica de intervenção mínima e eficiente do Estado na economia, conforme os princípios de direito econômico previstos na Constituição Federal brasileira e detalhados na Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/19).

De acordo com a lógica da intervenção mínima e eficiente que rege as operações no mercado de capitais, os próprios agentes de mercado, autorregulados de forma institucional e em interação com os órgãos reguladores, podem mitigar o risco de ocorrência de determinadas infrações por meio de um sistema inteligente de organização de mercado e alocação de responsabilidades e resolver eventuais infrações por meio da indenização de eventuais prejudicados, sanção aos infratores e melhoria de controles, por meio de processos conduzidos, em coordenação, por entidades autorreguladoras e órgãos reguladores.

As eventuais infrações são tratadas por, no mínimo, três camadas de supervisão e enforcement: dos próprios agentes de mercado com suas estruturas internas de compliance; das entidades autorreguladoras (por exemplo B3, BSM, ANBIMA e BBCE) e dos reguladores (Comissão de Valores Mobiliários “CVM” e Banco Central). A atuação das três estruturas deve ser coordenada, para aproveitar as sinergias de forma eficiente, evitar duplicidade de sanções (non bis in idem – conforme art. 62, parágrafo único da ICVM 607/19 e art. 49, § 4º e 5º da ICVM 461/07), garantir o máximo de celeridade na solução e, ao mesmo tempo, cumprir os princípios constitucionais da ampla defesa, contraditório e devido processo legal.

A estrutura acima mencionada permite que o direito penal foque apenas as infrações graves que atentem contra o bem jurídico tutelado pelas normas penais de mercado de capitais, com a conotação de reforçar a proteção a interesses difusos, coletivos, ou individuais homogêneos.

Na atual conjuntura econômica brasileira de juros baixos e inflação controlada, favorável ao mercado de capitais, a regulação passa por diversas alterações para acompanhar as inovações e modelar a infraestrutura de mercado mais adequada e eficiente para suportar e estimular o crescimento da base de investidores e aumento dos volumes operados.

Exemplo disso é a audiência pública SDM nº 9/2019 da ICVM 461/07, aberta em 27/12/2019, que disciplina os mercados regulamentados de valores mobiliários, na qual se debate, entre outros importantes assuntos, regras para estimular a competição entre ambientes de negociação, autorregulação unificada e o regime de melhor execução de ordens em contexto de concorrência entre ambientes de negociação.

Um dos pontos defendidos por alguns participantes de mercado é a permissão da internalização de ordens por intermediários (corretoras e distribuidoras) a exemplo do que ocorre nos EUA e Europa. Na internalização de ordens, o próprio intermediário executa a operação entre clientes compradores e vendedores, sem a necessidade de registro da operação no mercado de bolsa ou de balcão organizado.

Conforme a nomenclatura adotada no Brasil, referidas operações de internalização ocorrem em mercado de balcão não organizado, que é espécie do conceito “mercados regulados”, que engloba os mercados de bolsa, balcão organizado e balcão não organizado.

A internalização atualmente é permitida em determinadas hipóteses previstas no artigo 59 da ICVM 461/07, dentre as quais está a negociação de valores mobiliários não listados em mercado de bolsa ou de balcão organizado.

A ANCORD e outros participantes de mercado defendem a permissão da internalização de ordens, em mercado de balcão não organizado, inclusive para valores mobiliários listados em bolsa ou balcão organizado, para captura de determinadas vantagens tais como a redução de custo para os investidores, fortalecimento da indústria de intermediação e competição entre ambientes de negociação que levariam a uma saudável corrida pela qualidade e melhoria dos serviços no mercado.

Apesar do termo “não organizado”, as operações que ocorrem no mercado de balcão não organizado, fora dos mercados de bolsa e de balcão organizado, também devem cumprir regras de organização e de conduta, dispostas, em especial, na ICVM 505/11, dentre as quais se destacam o zelo pela integridade de mercado, o tratamento de situações de conflito de interesses, as normas de best execution e a necessidade de gravação das ordens de compra e venda para permitir a conciliação entre ordem, oferta e negócio, o que é fundamental para monitorar o processo de formação de preço e a integridade das operações.

Nesse contexto, B3 e BSM divulgaram, em 8/10/2020, o Comunicado Externo 001/2020-VOP (“Comunicado”), que consolida entendimento sobre a prática dos chamados “calls de mesa”, ou seja, negociações de valores mobiliários não listados em bolsa ou balcão organizado que ocorrem no mercado de balcão não organizado, nas quais participam intermediários (corretoras ou distribuidoras) operando carteira própria ou em nome de clientes, com interação competitiva entre ofertas de compra e de venda, para a definição de quantidade e preço de valor mobiliário.

Além disso, o Comunicado também esclarece que os intermediários exercem importante atividade de busca de contraparte para executar ordens que não são atendidas pela liquidez do sistema de negociação da B3, como ocorre nas ordens de compra ou venda de grandes lotes, constituindo “importantes instrumentos complementares e acessórios à negociação realizada nos mercados administrados pela B3”, conforme ressaltado no Comunicado. A busca de contraparte é complementar, pois as operações resultantes do encontro entre ordens de compra e de venda devem ser executadas na B3, por meio de uma funcionalidade do sistema de negociação denominada oferta direta[1].

A propósito, destacamos o item 3.2. do Comunicado, incluído por determinação da CVM, que trata da obrigação do intermediário de manter as gravações das ordens e a documentação de registro das operações de combinações de ativos em ambiente de balcão não organizado, no Brasil ou no exterior.

É possível que tais gravações contenham provas de infração cometidas que podem ser tratadas no âmbito penal. Nesse aspecto, se coloca um dilema complexo a respeito da apresentação, ou não, das referidas gravações em casos de repercussão criminal da prova demonstrada pela gravação.

De um lado, as gravações são obrigatórias para o intermediário, enquanto pessoa jurídica, e integram o sistema inteligente acima referido que inclusive justifica o direito penal mínimo. Nesse sentido, não haveria incentivo para o intermediário optar por não apresentar as gravações, pois tal conduta, além de sujeitar o intermediário, pessoa jurídica, à penalidade por não apresentação da gravação, configuraria ato contrário à credibilidade e organização do mercado, da qual o intermediário se beneficia como modelo de negócios.

Por outro lado, a apresentação de gravações que comprovam determinada infração é contrária ao princípio constitucional de que ninguém pode ser obrigado a produzir prova contra si mesmo. De fato, por interpretação extensiva do direito constitucional ao silêncio, a jurisprudência brasileira reconhece que o investigado não é obrigado a produzir prova contra si mesmo, ainda que, eventualmente, possua dever de entregar documentos por disposição de outra natureza (por exemplo administrativa ou contratual). Nesses casos, a jurisprudência entende que o direito à não autoincriminação estende-se também à esfera administrativa quando o ilícito constituir infração penal [2], o que afastaria a obrigação de atender pedido de órgão regulador ou autorregulador, caso o material solicitado pudesse incriminar o investigado.

A solução para tal dilema, a par dos diferentes enfoques que podem ser conferidos pela defesa do intermediário e respectivos operadores, enquanto pessoa jurídica ou física, poderia ser a majoração dos efeitos atenuantes da pena nos casos de cooperação com as investigações, a exemplo do que ocorre no âmbito administrativo, nos termos do artigo 66, inciso I da ICVM 607/19. O Código Penal brasileiro já prevê, no artigo 65, inciso III, “d”, a atenuação da pena quando o agente confessa espontaneamente a prática de infração, mas o auxílio prestado nas investigações poderia ser visto também como atenuante supralegal, nos termos do artigo 66 da mesma lei.

O Comunicado também exemplifica casos de operações irregulares, tais como operações com resultados previamente combinados (conhecidas no mercado como “vai e vem” ou “money pass”) executadas no mercado de bolsa (geralmente com ativos ilíquidos) para compensar diferença entre o preço da operação no mercado de bolsa e o preço definido no call de mesa.

Nesse aspecto, o Comunicado classifica essa prática como “simulação de negócio de bolsa para transferir recursos entre as partes”, o que poderia gerar consequências penais mais imediatas. Situações como essa, de fato, já foram entendidas pela BSM como criação de condições artificiais no passado e poderiam suscitar dúvidas quanto ao seu enquadramento no crime de manipulação de mercado.

A propósito, vale lembrar que, até novembro de 2017, o crime de manipulação de mercado previsto no artigo 27-C da Lei 6.385/76 era mais amplo e englobava praticamente todas as hipóteses de práticas abusivas de mercado, dispostas na ICVM 8/79, quais sejam, criação de condições artificiais de oferta e demanda, operações fraudulentas, manipulação de preço e práticas não equitativas.

Referido tipo penal, entretanto, foi alterado pela Lei 13.506/17, que, na linha do direito penal mínimo, restringiu seu alcance para a hipótese de manipulação de preços. Nesse sentido, referido crime ocorre apenas quando são realizadas operações simuladas ou manobras fraudulentas “destinadas a elevar, manter ou baixar a cotação, o preço ou o volume negociado de um valor mobiliário”, com a finalidade de obter também lucro ou vantagem indevida ou causar dano a terceiro.

A exigência de fim específico é o que nos parece afastar a existência de crime na operação realizada para compensar a diferença de preço: a finalidade, nesses casos, é apenas permitir que as diferenças sejam compensadas, sem intenção de “obter vantagem indevida ou lucro” ou “causar dano”, excluindo assim elemento necessário à caracterização do crime.

As breves considerações acima demonstram a importância da adoção de uma visão sistêmica que explicite a inter-relação entre os âmbitos da autorregulação, regulação e direito penal, a fim de que a integridade de mercado e a proteção ao investidor sejam mantidas por meio de um sistema eficiente, ágil e menos custoso.

[1] No Edital de Audiência Pública SDM nº 9/2019 da ICVM 461/07, há previsão de que a negociação de grandes lotes de valores mobiliários listados em mercado de bolsa possa ocorrer em mercado de balcão organizado (art. 67).

[2] No Recurso Especial n.º 1.677.380/RS, por exemplo, a segunda turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu que “é possível admitir a incidência ampliada do princípio nemo teneteur se detegere quando determinada infração administrativa também constituir ilícito penal. Nesses casos, a unicidade de tratamento confere coerência interna ao sistema jurídico” (decisão de 10/10/2017).

Link para o texto no Estadão

Este artigo foi escrito com a advogada Natasha do Lago, sócia de Ráo & Lago Advogados.


Imagem: Pixabay/Pexels

Autores L&S

Luiz Felipe Amaral Calabró

Luiz Felipe Amaral Calabró

Sócio

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