Entenda como funciona a Lei de Recuperação de Empresas e Falências
A Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005 (Lei de Recuperação de Empresas e Falência, a LREF), é a norma básica sobre recuperação judicial, recuperação extrajudicial e falência dos empresários e das sociedades empresárias.
Em linhas gerais, representa nova etapa na evolução do regime jurídico de insolvência empresarial. Sob a norma anterior (Decreto-lei nº 7.661, de 21 de junho de 1945), o único mecanismo visando à superação da crise econômico-financeira temporária do devedor era a concordata – essencialmente, uma moratória sujeita a condições predefinidas de pagamento e imposta aos credores. Constatada a ineficiência da concordata, a LREF substituiu-a pelas figuras da recuperação judicial e da recuperação extrajudicial, procedimentos que promovem a solução negociada entre devedor e credores com o objetivo de viabilizar a continuidade da empresa.
O devedor prepara e negocia um plano de recuperação, que precisa ser aprovado pela maioria dos credores afetados, segundo certos quóruns previstos na LREF. Diversos instrumentos podem ser – e comumente são – contemplados no plano, tais como desconto e parcelamento de dívidas, obtenção de novos financiamentos, alienação de ativos e restruturações societárias do devedor.
Deve ser decretada a falência da empresa cuja recuperação é inviável. A falência é grosso modo um procedimento de liquidação por meio do qual todos os ativos do devedor são arrecadados e vendidos para pagamento dos credores seguindo uma ordem de prioridades; busca-se também, entre outros objetivos, regular os efeitos da quebra perante terceiros e apurar eventuais responsabilidades por atos fraudulentos ou lesivos aos interesses dos credores.
O que muda com as alterações recentes na Lei de Recuperação Judicial de Empresas e Falências?
A Lei nº 14.112, de 24 de dezembro de 2020, promoveu diversas alterações na LREF com vistas a atualizá-la diante da evolução da jurisprudência e a regular temas que até então não encontravam a devida disciplina. As principais alterações são expostas a seguir; os dispositivos em parênteses são os da LREF, conforme redação da Lei nº 14.112/20.
Recuperação judicial
Sob a LREF (arts. 35, I, 41 e 45), o plano de recuperação judicial deve ser deliberado por uma assembleia de credores, organizados em 4 classes: trabalhistas; credores com garantia real (penhor, hipoteca, etc.); credores quirografários (sem garantia real); e microempresas e empresas de pequeno porte. Se aprovado, dá-se alteração nos valores e formas de pagamento dos créditos nos termos estabelecidos pelo plano (novação – art. 59); a rejeição, por sua vez, acarreta a convolação da recuperação em falência (art. 73, III).
Com a Lei nº 14.112/20, foram introduzidas mudanças relevantes na dinâmica de deliberação e aprovação do plano, podendo-se destacar: (i) permite-se aos credores apresentar plano alternativo caso o do devedor seja rejeitado ou o devedor tenha deixado de apresentá-lo no prazo (arts. 6º, § 4º-A, e 56, §§ 4º a 6º); (ii) a realização da assembleia pode ser dispensada caso sejam apresentados termos de adesão comprovando a concordância de credores representativos do quórum necessário para a aprovação (arts. 39, § 4º, I, 45-A e 56-A); e (iii) é tido por abusivo, e portanto nulo, o voto exercido pelo credor para obter vantagem ilícita para si ou para outrem (art. 39, § 6º).
Esse último ponto merece maior reflexão. Mesmo antes da Lei nº 14.112/20, tribunais já vinham por vezes descartando votos contrários ao plano sob o fundamento de abusividade; e o faziam não pelo voto em si mas com o propósito claro de viabilizar o atingimento do quórum de aprovação (não raro recorrendo ao chamado “cram down” previsto no art. 58, § 1º, da LREF – mecanismo pelo qual o juízo pode conceder à força a recuperação judicial mesmo que o quórum de aprovação não tenha sido atingido, contanto que atingido quórum “subsidiário”).
Todavia, o credor não é um acionista ou um parceiro do devedor: ele não aceitou voluntariamente a submissão do crédito aos efeitos da recuperação judicial; pode lhe ser racional a decisão de votar contra o plano porque (a) pretende submeter plano alternativo (como a LREF agora faculta) ou (b) antevê que seu crédito será pago em condições mais vantajosas numa falência.
A linguagem agora presente no art. 39, § 6º, da LREF é vaga: se por um lado se reconhece que o voto do credor é exercido “no seu interesse e de acordo com o seu juízo de conveniência”, por outro o voto será tido por abusivo se a finalidade do credor for “obter vantagem ilícita” – sem que se tenha delimitado que ilicitude seria essa. Em que pesem os esforços do legislador para nortear a discussão, persiste o risco de que magistrados descartem votos legítimos a fim de garantir artificialmente a sobrevivência duma empresa cujos credores rejeitaram o plano de forma massiva.
Passou a ser incentivado o uso de métodos alternativos de resolução de disputas, como a conciliação e a mediação (arts. 20-A e 20-B). Antes ou no curso do procedimento de recuperação judicial, é facultada a sua realização com o objetivo de dirimir disputas entre os sócios da empresa devedora, disputas com credores que não estão sujeitos à recuperação judicial, conflitos entre concessionárias ou permissionárias de serviços públicos e os respectivos órgãos reguladores, renegociação de dívidas antes do ingresso do pedido de recuperação, entre outros.
Foram reguladas também situações que já vinham sendo admitidas de modo pacífico pela jurisprudência em casos de grupos econômicos: a inclusão de diferentes empresas do grupo no polo ativo de um mesmo processo (consolidação processual – arts. 69-G a 69-I) e, mais que isso, a unificação dos próprios ativos e passivos das empresas como se fossem um só devedor para efeitos de elaboração e votação de plano único de recuperação (consolidação substancial – arts. 69-J a 69-L).
A consolidação substancial é particularmente útil ao grupo devedor porque reduz o poder de barganha dos credores mais relevantes na negociação do plano: se eles antes seriam capazes de influenciar o desfecho do plano de uma dada sociedade do grupo devedor (por vezes com garantias cruzadas perante as demais, criando assim risco para o grupo todo), essa influência é diluída quando o credor é obrigado a fazer parte de um universo maior de credores. Ademais, os credores têm capacidade limitada de oposição, já que cabe ao juízo decidir – e não a eles deliberar – a concessão da consolidação substancial (art. 69-J).
A Lei nº 14.112/20 buscou também facilitar a obtenção de crédito novo pelo devedor em recuperação judicial (o chamado “debtor-in-possession financing” ou simplesmente “DIP financing” – arts. 69-A a 69-F) mediante um ambiente mais seguro para o financiador: (i) permitiu a concessão de ativos do devedor em garantia a financiamentos; (ii) resguardou as garantias e condições originais pactuadas, mesmo no caso de subsequente reforma da decisão que autorizara a operação (desde que o financiador esteja de boa-fé e os recursos já tenham sido destinados ao devedor); e (iii) permitiu a criação de garantias de segundo grau, ou seja, subordinadas ao prévio pagamento do detentor da garantia original e restritas a eventual saldo após tal pagamento.
Do ponto de vista tributário, algumas alterações significativas foram implementadas com o objetivo de, ainda que parcialmente, sanar críticas e questionamentos recorrentes acerca do tratamento dos descontos obtidos pelo devedor para pagamento de suas dívidas, que segundo a legislação fiscal são tratadas como receitas e sujeitas a tributação.
O art. 50-A passou a prever que essas receitas originadas dos descontos obtidos com a negociação do plano de recuperação judicial: (i) não integram a base de cálculo da Contribuição para o Programa de Integração Social (PIS) e para o Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Pasep), e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins); e (ii) podem ser integralmente compensadas com prejuízos acumulados, não se sujeitando, para apuração do lucro real, ao limite de 30% (trinta por cento) previsto na legislação.
No entanto, alguns pontos usualmente criticados da lei permaneceram inalterados: (i) exigência de certidão negativa de tributos como condição para a concessão da recuperação judicial (a exigência é costumeiramente é dispensada pela jurisprudência por inviabilizar na prática a recuperação); e (ii) impossibilidade de transferência do prejuízo fiscal acumulado a terceiros.
Por fim, alterações pontuais foram introduzidas na LREF sobre: (i) suspensão do trâmite de ações e execuções individuais promovidas pelos credores após o deferimento do processamento da recuperação judicial (art. 6º, § 4º); (ii) competência para determinar o bloqueio de bens do devedor durante esse procedimento (art. 6º, §§ 7º-A e 7º-B); (iii) impossibilidade de distribuição de lucros e dividendos (art. 6º-A); (iv) possibilidade de análise preliminar por perito judicial para avaliar reais condições de funcionamento do devedor e da regularidade e da completude da documentação apresentada (art. 51-A); e (iv) ampliação da isenção de responsabilidade do adquirente de ativos do devedor por débitos do devedor (não-sucessão – arts. 50, § 3º, 60, parágrafo único, 66, § 3º, e 141, II).
Recuperação extrajudicial
A recuperação extrajudicial foi criada pela LREF como uma forma de negociação entre o devedor e credores de apenas uma ou algumas classes, conduzida e concluída fora do âmbito do Judiciário, mas que diante da presença de certos requisitos pode ser levada para homologação judicial com o objetivo de vincular credores da(s) classe(s) abrangida(s), os quais não aderiram aos termos negociados.
As principais modificações da LREF pela Lei nº 14.112/20 foram as seguintes: (i) o plano pode vincular todos os credores por ele abrangidos desde que aprovado por credores representativos de metade da respectiva classe (art. 163, caput – reduziu-se o quórum original da LREF, que era de 3/5); (ii) o devedor pode submeter o pedido de homologação judicial com apenas 1/3 de aprovação dos credores, desde que comprove nos 90 dias subsequentes a adesão dos demais (art. 163, § 7º); e (iii) com o ingresso do pedido de homologação do plano, suspendem-se as ações e execuções movidas por credores abrangidos por ele (art. 163, § 8º – sob o texto original da LREF, a suspensão só cabia nos casos de recuperação judicial, mas isso vinha sendo estendido pela jurisprudência aos casos de recuperação extrajudicial).
Nova Lei de Falências
A reforma da LREF reforçou, dentre os objetivos da falência, a busca da célere realização dos ativos e apuração dos passivos, para realocação eficiente de recursos na economia.
Assim como na recuperação judicial a verificação dos créditos (existência, classe e valor) é relevante para aferição do quórum de aprovação do plano (e então dos efeitos do plano aprovado sobre cada credor), na falência essa mesma verificação é relevante para estabelecer a ordem de pagamento do passivo: há uma ordem legal de preferências de acordo com a natureza (classe) dos créditos; só há pagamento de uma classe depois que a anterior tiver sido integralmente paga, e os credores da classe recebem rateios proporcionais ao valor de seus créditos dentro de tal classe.
Dentre as alterações na LREF a respeito do passivo falimentar, as mais relevantes são: (i) credores têm agora o prazo de 3 anos contados da publicação da sentença decretando a falência para habilitar seus créditos, sob pena de perderem o direito de participar da falência (art. 10, § 10); (ii) as classes de créditos com privilégio geral e especial foram eliminadas e incorporadas à dos créditos quirografários (art. 83, § 6º); (iii) créditos de administradores eram subordinados (i.e., pagos em último lugar), mas agora só são enquadrados assim caso a contratação não tenha observado condições comutativas e práticas de mercado (art. 83, VIII); e (iv) créditos cedidos continuam a gozar da mesma classificação original (art. 83, § 5º – isso tende a beneficiar credores preferenciais, como os trabalhistas, os quais terão maior mercado e retorno se optarem por vender seus créditos a terceiros).
Quanto à realização mais célere do ativo, a Lei nº 14.112/20 introduziu as seguintes mudanças: (i) o administrador judicial deve apresentar dentro de 60 dias da decretação da falência um plano detalhado de alienação dos ativos (art. 99, § 3º); (ii) as formas de realização do ativo foram flexibilizadas para prever a alienação de bens por meio de: a) leilão eletrônico, presencial ou híbrido; b) processo competitivo promovido por agente especializado; ou c) qualquer outra modalidade aprovada nos termos da lei (art. 142); (iii) adotam-se diretrizes mais dinâmicas para a venda do ativo: a) dado o caráter forçado da venda, ela prossegue ainda que a conjuntura de mercado seja desfavorável; b) a venda deve ser feita em até 180 dias da arrecadação do ativo; e c) não se aplica o conceito de preço vil, i.e, deixa de haver valor mínimo de venda (art. 142, § 2º-A); (iv) em caso de insucesso na venda e desinteresse dos credores, bens podem ser considerados sem valor de mercado e doados ou devolvidos ao falido (art. 144-A); e (v) impugnações à realização do ativo, caso fundadas no valor da alienação, somente são admitidas se o impugnante apresentar oferta própria ou de terceiro para comprar por valor superior (art. 143, § 1º).
Alteraram-se ainda as regras para extinção das obrigações do falido, reduzindo requisitos necessários para se obter a declaração judicial de extinção das obrigações (art. 158).
Por fim, passou a ser permitido o encerramento sumário da falência caso não sejam encontrados bens passíveis de arrecadação, ou se insuficientes às despesas do processo (art. 114-A).
Insolvência transnacional
À medida que a economia brasileira se internacionalizou nas últimas décadas, mais empresas locais passaram a ter créditos e dívidas no exterior. Tal como originalmente promulgada, porém, a LREF não previu mecanismos para cooperação entre o Judiciário brasileiro e o de outros países.
Essa lacuna mostrou-se danosa em recuperações judiciais de empresas brasileiras com parte substancial do passivo em mãos de credores estrangeiros – algumas até mesmo tendo usado subsidiárias não-operacionais sediadas no exterior para captar recursos fora do país. A falta de regras tornava incerto, por exemplo, se as subsidiárias estrangeiras e as matrizes brasileiras poderiam ajuizar um só processo de recuperação no Brasil, ou se seria possível ao Judiciário brasileiro emitir ordens relativas a ativos dos devedores localizados noutros países.
A Lei nº 14.112/20 eliminou essa lacuna, criando um regramento próprio para os casos de insolvência transnacional que está em linha com a prática internacional. Esse regramento é inspirado na chamada “lei modelo” publicada pela UNCITRAL em 1997 (a “UNCITRAL Model Law on Cross-Border Insolvency (1997)”). A UNCITRAL é a comissão da Organização das Nações Unidas dedicada ao direito do comércio internacional; sua “lei modelo” é uma sugestão de regramento que os países são incentivados (mas não obrigados) a transformar em legislação interna com vistas a padronizar os regimes de insolvência transnacional e, assim, dar mais segurança aos investimentos transfronteiriços.
O regramento da insolvência transnacional está no capitulo VI-A da LREF (arts. 167-A a 167-Y). Em linhas gerais, são previstas regras para: (i) permitir ao representante de uma empresa em processo de insolvência no exterior requerer a falência no Brasil ou atuar em procedimentos de recuperação judicial ou falência que aqui tramitem, possibilitando assim o acesso direto e evitando o uso de meios morosos de cooperação (como cartas rogatórias, por exemplo); (ii) resguardar a paridade de tratamento entre credores nacionais e estrangeiros e respeitar a ordem de preferência de créditos prevista na LREF (exceto quando se tratar de créditos estrangeiros de origem tributária, previdenciária ou relativa a sanções penais ou administrativas, hipótese em que serão considerados subordinados na falência); (iii) havendo processos de insolvência concorrentes no Brasil e noutra jurisdição, definir qual é o principal (“main proceedings”) conforme o local onde o devedor tenha seu centro de interesses principais (“center of main interests”), o que tem por efeito prático definir se caberá ao Judiciário brasileiro o papel de coordenar e supervisionar a insolvência transnacional como um todo; (iv) reconhecido um procedimento principal de insolvência no exterior, impedir a prática de atos de constrição de bens do devedor localizados no Brasil e praticar outros atos conforme definidos no processo principal; e (iv) viabilizar a cooperação entre os diferentes juízos para a liquidação de ativos e pagamento coordenado dos credores.
As modificações à LREF introduzidas pela Lei nº 14.112/20 contribuem para a modernização do regime jurídico de insolvência empresarial, agilizando e desburocratizando os procedimentos de recuperação judicial, recuperação extrajudicial e falência. A reforma é um passo na direção certa da celeridade e da efetividade, mas o problema da insegurança jurídica só será superado com a efetiva aderência dos tribunais às regras novas e antigas da lei – aderência essa que por vezes vem sendo deixada em segundo plano no âmbito das recuperações judiciais, com decisões que a pretexto de promover o princípio da preservação da empresa (art. 47) adotam entendimentos contrários a dispositivos expressos da mesma LREF.
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