O novo marco legal das ferrovias - a Lei 14.273/21 - traz mudanças de grande impacto, cuja implementação prática tende a enfrentar importantes entraves e resultar em contenciosos.
A principal inovação do novo marco legal é a organização de um regime privado de exploração da atividade. Historicamente, as ferrovias vêm sendo desenvolvidas e exploradas por empresas estatais ou por particulares atuando em regime de concessão, com controle pelo poder público dos aspectos centrais da atividade - o que inclui tarifas, condições de prestação do serviço e investimentos. Ao mesmo tempo, assegurava-se ao particular a preservação do equilíbrio econômico-financeiro da operação.
O regime privado aproxima a atividade do ambiente de livre iniciativa. O particular passa a ter liberdade para definir em que termos prestará o serviço e qual infraestrutura irá implantar. Também deverá assumir os riscos inerentes à operação, sem poder demandar do poder público recomposições ou indenizações sob a justificativa de manter a equação econômico-financeira que motivou o investimento.
O regime público - de concessão - e o privado irão conviver, com possibilidade de as atuais concessionárias migrarem para o segundo quando nova ferrovia for autorizada em sua área de atuação (artigo 64 da Lei 14.273/21). O novo marco legal admite, portanto, a possibilidade de organização do serviço em bases competitivas, o que constitui quebra de paradigma em setor tradicionalmente regulado como monopólio.
A dualidade de regime - público e privado - e a convivência no mesmo setor entre ambiente de concorrência e a regulação de certos agentes em bases mais estritas, como se fossem monopólios naturais, representa flexibilidade de modelos de operação que faz sentido em país com a extensão geográfica e diversidade do Brasil.
Não se trata de solução regulatória inédita em nosso país. Essa abordagem já foi usada em outros setores, inclusive a previsão de migração de concessionárias para regimes privados de autorização. Nas telecomunicações, a dualidade de regimes remonta à privatização. A Lei 9.472/97 - a Lei Geral de Telecomunicações (“LGT”) - disciplinou a concomitância de regimes público e privado de prestação dos serviços e a concorrência como vetor de organização setorial. Mais recentemente, alteração na LGT promovida pela Lei 13.879/19 admitiu a possibilidade de as concessionárias migrarem para o regime privado de autorização.
O setor ferroviário, porém, apresenta especificidades que impõem dificuldades importantes à implementação prática desse tratamento regulatório. Ao contrário do setor de telecomunicações, em que os serviços ainda prestados em regime público apresentam relevância limitada frente à evolução tecnológica e de mercado, praticamente toda a malha ferroviária atual é operada sob concessões.
Ademais, as atuais concessões de telecomunicações foram fixadas já prevendo que as empresas atuariam em cenário de concorrência. Isso significa que os impactos da dinâmica competitiva sobre as concessionárias devem ser por elas suportados e não permitem pleitos de reequilíbrio econômico-financeiro. Já as regras dos contratos de concessão de ferrovias, que obviamente antecedem o novo marco legal, foram concebidas para organizar o setor sob modelo de monopólio. Consequentemente, impactos sobre a demanda dos serviços das concessionárias advindos de novas autorizações tendem a gerar pleitos de recomposição do equilíbrio econômico-financeiro.
O efeito da entrada de novas operações sobre cada concessão dependerá de avaliação específica e casuística. Não necessariamente alterará de forma negativa a equação econômico-financeira do contrato. É possível que a nova ferrovia venha atender demanda potencial ou de usuários de outros modais que não tinha como ser atendida pela capacidade existente da concessionária. Mas é avaliação que demanda análise complexa, que pode, em determinados casos, dificultar a tramitação de pedidos de autorização e gerar pleitos de indenização contra a União.
A Lei 14.273/21 não disciplinou expressamente os eventuais impasses que podem surgir nesse contexto. Há previsão de que a concessionária afetada pode pedir adaptação do seu contrato para o regime de autorização, o que lhe daria mais flexibilidade operacional. Mas como deve manter as obrigações financeiras perante a União e os investimentos previstos na concessão (artigo 64, § 5º), é improvável que a adaptação do contrato compense eventuais impactos sobre a equação econômico-financeira do contrato.
O texto original previa que, caso não fosse realizada a adaptação da concessão para autorização, o concessionário teria direito a pleitear o reequilíbrio econômico-financeiro. Houve veto a essa previsão, sob o argumento de que poderia ser interpretada no sentido de que o pedido de adaptação seria de atendimento obrigatório e, caso negado, automaticamente haveria direito ao reequilíbrio.
Não obstante o veto, o princípio geral de que se deve respeitar o equilíbrio econômico-financeiro das concessões foi reafirmado no artigo 10 da lei, em linha com as legislações antecedentes aplicáveis às concessões ferroviárias. A lei ainda prevê que, na análise do requerimento de outorga de autorização, deve-se levar em consideração “a convergência do objeto do requerimento com a política pública do setor ferroviário” (artigo 25, § 3º, I), o que implica considerar seu impacto sobre as ferrovias em operação. O tratamento não poderia ser distinto, pois a nova lei não poderia desconsiderar as regras pactuadas nos contratos de concessão vigentes, os quais contém cláusulas abrangentes de preservação da equação econômico-financeira.
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