Caso Figueirense: insolvência das entidades não-empresárias
A ideia de “recuperação” faz parte do jargão futebolístico. O atleta recupera o bom futebol; o time se recupera durante uma partida; o clube se recupera ao longo do campeonato ou mesmo após um rebaixamento.
Em março de 2021, o termo recebeu uso até então inédito no mundo do futebol, mas bem conhecido no dos negócios: o Figueirense Futebol Clube, agremiação catarinense centenária, ajuizou pedido cautelar preparatório a posterior pedido de recuperação judicial. As dívidas estariam na casa dos R$165 milhões e seria necessário suspender sua exigibilidade para viabilizar a sobrevivência da instituição até a renegociação coletiva com credores.
O pedido cautelar foi extinto em primeira instância, mas o clube recorreu e a decisão foi reformada monocraticamente pelo relator no Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. Que se tenha notícia, trata-se do primeiro precedente favorável à possibilidade de clube de futebol pleitear recuperação judicial.
Ainda é cedo, contudo, para dizer que o jogo está ganho e essa posição prevalecerá no Judiciário. E isso, sobretudo, porque o Figueirense é uma associação civil e como tal é questionável seu direito de pedir recuperação judicial.
O Código Civil contém a tipologia básica das pessoas jurídicas e distingue claramente as associações das sociedades. Grosso modo, nestas o desempenho da atividade (a persecução do objeto social) é meio e o lucro é a finalidade última; naquelas, dá-se o oposto, sendo o lucro um meio para o desempenho da atividade associativa. Associações, naturalmente, necessitam de recursos, podem cobrar por bem ou serviço e podem ser superavitárias (é saudável que o sejam); nem por isso se confundem com sociedades, já que eventual superávit não será repartido entre os associados e sim reinvestido.
Essa distinção entre associações e sociedades tem forte implicação prática, da carga tributária às obrigações mútuas entre os membros da pessoa jurídica, passando por questões de registro e por deveres e funções de gestores. Basta relembrar que há quase quinze anos as corretoras que formavam a Bovespa transformaram-na de associação em sociedade a fim de viabilizar abertura de capital.
A Lei de Falências e Recuperações é aplicável especificamente a empresários e sociedades empresárias – não fala em associações. Como praticamente todas as agremiações do futebol brasileiro, o Figueirense nasceu e cresceu como associação; o futebol masculino profissionalizou-se mas continua a ser só uma das atividades associativas. Juridicamente, o objetivo do clube não é o lucro, é a prática esportiva. O Figueirense, aliás, chegou a transferir operações ligadas ao futebol a uma sociedade empresária e ela é coautora do recente pedido cautelar. Portanto, o clube conhece a diferença entre os regimes jurídicos, com os ônus e os bônus de cada um.
Embora pioneiro entre os clubes de futebol, o Figueirense não é a primeira associação a buscar a via da recuperação judicial a despeito de a Lei de Falências e Recuperações não lhes ser aplicável sob uma interpretação mais estrita. Há exemplos nos ramos universitário e hospitalar.
A iniciativa ousada dessas entidades é reveladora dum problema mais amplo e até agora em larga medida negligenciado: o Brasil não tem uma legislação funcional que dê conta do processo de insolvência dos não-empresários.
O Código de Processo Civil de 2015 não trata do tema e recua a bola para o CPC anterior, de 1973, até que seja editada lei específica.
O mecanismo previsto no CPC 73 atende pelo pomposo nome de “execução por quantia certa contra devedor insolvente”. Não passa duma “falência do não-empresário”. A declaração da insolvência pode ser pleiteada tanto por credor quanto pelo próprio devedor, mas num ou noutro caso se trata de execução coletiva em prol dos credores da qual resulta o encerramento do insolvente: este deixa de administrar e dispor de seus bens, suas dívidas vencem antecipadamente e o ativo é arrecadado e realizado para satisfazer o passivo. Além de carecer de imaginação, o mecanismo é ineficiente e pouco usado na prática.
Diante dos (já não tão) novos paradigmas trazidos pela Lei de Falências e Recuperações, o anacronismo do processo de insolvência dos não-empresários é gritante. Evidentemente, a liquidação forçada jamais serviria a uma associação que tenha potencial para continuar perseguindo sua finalidade associativa mas não tenha forças para tanto sem proteção judicial temporária. O Figueirense não quer entregar seu estádio e demais ativos aos credores e fechar as portas. Quer reestruturar dívidas de modo ordenado para seguir competindo e representando associados e torcedores.
Não só isso, entidades não-empresárias também geram empregos e pagam tributos; várias têm impacto inequívoco na comunidade e, pelo montante de recursos que giram, papel importante na geração e circulação de riqueza. Sendo contornável a crise econômico-financeira, é irracional que a única alternativa à negociação privada com credores individualmente seja a liquidação forçada em execução coletiva.
O vácuo legislativo cria insegurança jurídica. Enquanto não houver uma solução técnica apropriada para as entidades não-empresárias em crise, a tendência é que elas busquem cada vez mais a via da recuperação judicial, especialmente diante de sinalizações positivas como a do caso Figueirense.
E não será surpresa se os Tribunais afinal aceitarem a recuperação de tais entidades a despeito do alcance específico da Lei de Falências e Recuperações. Põe-se diante do Judiciário um problema prático, que é o risco existencial imediato da associação insolvente. Se a jurisprudência em matéria de recuperações judiciais diz algo, é que os magistrados são bastante sensíveis à realidade fática dos devedores e alguns estão dispostos até a esgarçar o texto legal para acomodá-la.
O caminho certo é também o mais difícil, aqui e em tantos outros aspectos da vida institucional brasileira: respeito inegociável às regras do jogo, ainda que o time a que se é simpático saia perdedor.
Imagem: Tapanakorn