Como no tempo do outono se abate terrível procela
na terra escura, ao mandar Zeus potente infinito aguaceiro,
quando irritado se encontra com os homens e quer castigá-los,
por ver que torcem no foro a justiça e sentenças proferem
desrespeitando o direito sem medo dos deuses eternos
(Homero, A Ilíada, tradução de Carlos Alberto Nunes, São Paulo, Hedra, 2011, canto XVI, versos 384 a 388, p. 344 e 345)
Como muito mais no Direito Societário das companhias, as poison pills nasceram nos Estados Unidos. Na década de 1980, marcada por ataques hostis a sociedades já então controladas por grupos minoritários em capital.
Muitos desses ataques faziam-se sem que houvesse sequer aplicação significativa de capital, através de técnicas de alavancagem, visando a aquisição de grupo empresarial com recursos oriundos de dívida, a qual era finalmente paga pela própria sociedade adquirida. Para tanto usavam-se técnicas como a emissão de títulos de alto risco, os junk bonds, por sociedade adquirente formada especialmente para participar do processo. Uma vez completada a aquisição, era a sociedade adquirente incorporada ou fundida com a adquirida, com transferência portanto da dívida à própria sociedade-alvo da transação. Obviamente esse tipo de técnica ampliava em muito a atividade de ofertas hostis, como finalmente ampliou também o trabalho para advogados criminais na defesa dos mais proeminentes promotores desses negócios.
Um exemplo de transação desse tipo pode ser encontrado no interessante e realista filme Barbarians at the Gate, de 1993, inspirado em livro do mesmo nome, sobre a batalha de ofertas públicas pela aquisição da RJR Nabisco no final da década de 80, do ramo de cigarros e alimentos. E o espírito da década pode ser resumido na frase do presidente do board da empresa-alvo: Ninguém pode negar que há muita ganância em curso nos dias que correm. Trata-se, acho, apenas de decidir quanto dessa ganância é justa.
Como reação a isso a criatividade jurídica de advogados corporativos passou a criar cláusulas estatutárias com ônus a aquisições hostis de controle, as poison pills que dão nome a este artigo. Esses mecanismos tinham a forma de direitos equivalentes a nossas debêntures, eventualmente conversíveis, ou bônus de subscrição, e eram emitidos quando da existência de oferta hostil, ou então antes dela, nesse caso de forma condicional a que a oferta existisse. Os direitos dados por esses títulos poderiam ser o recebimento de participação societária por valores vantajosos em relação aos de mercado pela conversão de bônus e debêntures, e mesmo o vencimento antecipado ou a recompra com prêmio no caso das debêntures. Em todas essas hipóteses, aliás admitidas também no Brasil pelo regramento de bônus e debêntures na nossa Lei das Sociedades Anônimas, haveria a criação indireta de maior ônus econômico para os adquirentes hostis de controle, que deveriam buscar mais ações, e eventualmente de empresa menos líquida, no caso de ter ela arcado com prêmio na recompra de debêntures.
Pois no Brasil, com a generalização do acesso aos mercados de capitais após a virada do milênio, atingindo o auge no fim de sua primeira década, as poison pills também entraram em cena. Havia certa deficiência de cálculo econômico e aconselhamento jurídico em sua criação, estabelecidas que foram em muitas aberturas de capital em que o controlador majoritário original vendia apenas participação minoritária no mercado. Em um cenário assim, as poison pills adotadas tinham por principal efeito a redução do valor das ações no mercado, sem proteger o controlador de risco inexistente de perda do controle. Só prejudicavam, sem ajudar.
Só que ainda mais do que isso, a versão brasileira das poison pills nunca, ou raramente, adotou a forma original de emissão de bônus de subscrição ou debêntures. Optou-se em nossas terras pela inserção no estatuto do ônus de que o adquirente a partir de certo patamar fizesse oferta pública a todos os demais acionistas, muitas vezes ofertando mais, ou muito mais, do que o valor de mercado da participação em questão. Ou então privando de voto o controlador a partir de certo patamar. O que seria gravoso a ponto de produzir desinteresse para qualquer ofertante hostil.
Esses entendimentos contaram até agora com o silêncio ou no mínimo indecisão de reguladores e auto-reguladores. No primeiro caso, a jurisprudência administrativa da CVM tem deixado de impedir o voto favorável de acionistas a introdução de cláusulas estatutárias exigindo oferta pública: mas são decisões escassas e inseguras quanto a seus fundamentos, incapazes de levar tranquilidade a empresas e empresários. Já a auto-regulação do Novo Mercado permite que o voto seja limitado a qualquer porcentual do capital total, a partir do confortável patamar de 5%, tornando ociosas disputas por votos a partir do patamar estabelecido.
Não se deve enxergar nessas poucas iniciativas afirmação da licitude das poison pills à brasileira. A Lei das Sociedades Anônimas de fato impõe a acionistas controladores exercendo seus poderes de voto, e a administradores, a obrigação de votar e agir em benefício da companhia, sem conflito de interesses e sem o intuito de causar prejuízo a acionistas minoritários.
Na omissão de reguladores e na falta de decisões jurisprudenciais, carrega peso aqui a jurisprudência americana, que em casos como Moran v. Household International (1985) e Unocal v. Mesa Petroleum Co., decisões da Suprema Corte de Delaware em 1985, firmaram o entendimento de que pílulas seriam ilegais sempre violassem teste de razoabilidade objetivo: deveriam reagir a ameaça concreta à estabilidade da companhia, de forma proporcional. Esses princípios nos parecem os mesmos vigentes no Brasil, inclusive dada a filiação de nossa Lei das Sociedades Anônimas à tradição anglo-saxônica.
Assim, resistiriam a análise acurada nos tribunais brasileiros apenas pílulas em relação às quais se pudesse comprovar que reagem a oferta hostil específica desestruturadora da companhia. Por exemplo ofertas financeiramente desinteressantes, ou feitas por concorrente para eliminar competição, ou de autoria de controlador inidôneo ou financeiramente incapacitado para investimentos necessários aos negócios. Na falta dessa prova, não deveriam as pílulas contar com beneplácito judicial.
E aqui reside o problema das escolhas estatutárias brasileiras: a cláusula típica impondo o ônus de realização de oferta pública, ou restringindo direitos de voto, é de aplicação incondicional, seja a ofertas hostis mas vantajosas, seja àquelas que pelas razões acima devam ser recusadas. Sua simples introdução para uso potencial ofenderia direitos de minoritários, representando quebra de deveres fiduciários dos acionistas que nelas votaram, e de administradores que as ponham em ação.
Mas como corrigir o problema? Parece-nos que o caminho correto tem duas etapas. A primeira é refletir sobre a necessidade de pílulas, e retirar as muitas que não passam sequer no teste da utilidade no caso de persistir controle majoritário: desvalorizam as ações negociadas sem prevenir risco inexistente de oferta hostil
Sobrariam as demais, para as quais se podem recomendar os seguintes ajustes:
i) cláusula permitindo ao conselho de administração cancelá-las, poder esse que poderia ser preferencialmente vinculado a características objetivas da oferta hostil, tais como capacitação de controladores, idoneidade e, conjuntamente, características econômicas da oferta – feito isso seu uso poderia ser aquilatado com base no interesse da companhia e da generalidade dos acionistas na oferta, ou seja, haveria respeito a obrigações fiduciárias de acionistas e administradores; ou
ii) alternativamente pílulas sob forma de bônus de subscrição e debêntures poderiam passar a ser adotadas entre nós, sendo (a) criadas pelo conselho de administração só após a ocorrência de uma oferta negativa para a companhia, em vista da falta de mérito da oferta concreta, e (b) dotadas da cláusula de cancelamento descrita em i).
São medidas simples, mas efetivas, para afastar os aguaceiros com que Homero ameaça aqueles que torcem no foro a justiça e sentenças proferem desrespeitando o direito sem medo dos deuses eternos.
Link para matéria no Capital Aberto.
Imagem: Kanchanachitkhamma