Recentemente, foi editada a Medida Provisória 930, que, dentre as novidades, altera regras do sistema de pagamentos. Foco é garantir que fluxos de pagamentos iniciados por cartões sejam mantidos mesmo que empresas que prestam serviços de repasse paralisem as atividades por problema de solvência. Com isso, o dinheiro entregue pelo portador do cartão continuará chegando sem atraso ao lojista destinatário.
O momento é propício. De um lado estão estabelecimentos afetados pela baixa do consumo. Mais do que nunca, precisam que os pagamentos das vendas sejam recebidos com segurança, garantindo liquidez a seus negócios. De outro, prestadores de serviços de pagamento, como credenciadoras e emissoras de cartão.
Os créditos cedidos a terceiros permanecem segregados do patrimônio da cedente. A conclusão não muda se for submetida a regime de insolvência
O Banco Central tem prestigiado a modernização e abertura do mercado de pagamentos, inclusive flexibilizando a necessidade de autorização para empreendimentos com volume financeiro reduzido ou escopo limitado. Também estuda implementar estrutura de testes com projetos inovadores em ambiente controlado (sandbox regulatório).
As medidas têm mudado o sistema de pagamentos. O número de novos agentes, como FinTechs, e seu volume de operações aumentaram. Impactos para concorrência são positivos, mas empresas menos consolidadas podem ser mais voláteis se tiverem menor disponibilidade de caixa. Portanto, temos um setor mais competitivo, porém com mais participantes sensíveis a impactos de crises. Isso justamente quando caminhamos para uma profunda recessão.
Outro fator de risco são os períodos de exposição na cadeia de transações intermediárias (entre pagador e recebedor final). O contexto de surgimento de cartões de crédito no Brasil (hiperinflação e substituição do cheque) resultou em práticas peculiares que se consolidaram, como prazos extensos de pagamento a lojistas. O vencimento de obrigações entre participantes do arranjo é escalonado no tempo, conferindo exposição a risco de liquidez.
Para blindar fluxos de pagamento dos problemas de crédito de agentes intermediários, a MP trata o fluxo como patrimônio separado dos bens e direitos do agente de pagamento. Tais recursos não são objeto de constrição judicial nem se sujeitam a regimes de insolvência, liquidação ou recuperação. A justificativa é simples: legítimo destinatário dos recursos é o recebedor final (lojista), e não o participante do arranjo por onde transitam os valores.
A MP também determina que esses recursos recebidos pelos participantes do arranjo não podem ser cedidos para terceiros nem dados em garantia, exceto quando o valor captado com as operações se destinar ao pagamento do destinatário final. A vedação não atinge operações contratadas antes da MP, que constituem ato jurídico perfeito, protegido pela Constituição.
Continua permitida a cessão definitiva ou em garantia para obtenção de fundos destinados à antecipação de pagamento a destinatários finais. A antecipação de recebíveis proporciona justamente a satisfação do crédito que a MP quer resguardar. A destinação precede o emprego na finalidade legal e pode ser demonstrada por cláusula contratual determinando que o produto da captação será aplicado em adiantamentos a usuários finais.
Tem-se questionado se, incorrendo a instituição de pagamento (como credenciadora) em regime de insolvência, as cessões de recebíveis seriam invalidadas. Indagação pertinente em tempos de recessão.
Os créditos cedidos a terceiros permanecem segregados do patrimônio da cedente. A conclusão não muda se ela for submetida a regime de insolvência. A cessão segue eficaz mesmo se o cedente for liquidado ou falir antes de empregar os recursos levantados para liquidar suas obrigações. O cessionário estará protegido, pois manterá o direito de receber o crédito adquirido sem observar regras de processo concursal.
Porém, certas operações realizadas por entes insolventes não são aceitas.
Se uma instituição de pagamento é submetida à falência ou liquidação extrajudicial, forma-se uma universalidade a ser distribuída entre seus credores. É uma massa que deve ser resistente a desvios. Independentemente de sua intenção, atos que violam a igualdade de credores serão ineficazes perante tal massa. Pode ser o caso, por exemplo, de empréstimo ou cessão de crédito com juros ou taxa de desconto notavelmente acima de mercado, e do uso de créditos como garantia nova de dívida preexistente.
Outros atos podem ser impugnados se houver cumulativamente: intenção de prejudicar credores; acordo fraudulento entre empresa falida ou liquidada e contraparte; e prejuízo à massa. Em certos casos, atos prejudiciais a credores são anuláveis independente de liquidação ou falência. Por exemplo, quando o cedente for notoriamente insolvente no momento da cessão.
Enfim, a MP ajuda a blindar recursos destinados a lojistas sem prejudicar atividades-meio de instituições de pagamento, como cessão de créditos para antecipação de recebíveis. Havendo insolvência da cedente, os novos credores não são afetados. Óbices existirão em casos excepcionais, como acordos fraudulentos.
Fabio Kupfermann Rodarte é advogado de Levy & Salomão Advogados. Graduado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e mestrando pela Fundação Getúlio Vargas.
Acesse aqui o artigo no Valor Econômico.