Advocacia, a profissão que se esqueceu de mudar

“As coisas precisam mudar para permanecerem exatamente como estão.” (Giuseppe Tomasi di Lampedusa, ‘O Leopardo’)

A advocacia é rígida, às vezes marcada por ênfase em formas e formalidades. Tendência agravada porque escritórios cresceram, muitos chegam a centenas de advogados, se departamentalizaram, mas paradoxalmente fazem menos. Frequentemente sua ocupação é monotemática, negócios societários ou de financiamento, trabalho repetitivo, pouca inovação intelectual. E a própria departamentalização é enganosa, pois os departamentos lá estão apenas para preparar relatórios sobre as obrigações contratuais ou de outra natureza da parte contrária, a chamada auditoria.


A atividade estereotipada se reproduz na linguagem. Já se criticou nos bacharéis no século 19 a imitação do modelo francês, denotativa da mediocridade da classe dominante. Pois bem, o mesmo fenômeno afeta a advocacia, mas já agora o modelo é anglo-saxônico: deixamos de ter paradigmas, para ter benchmarks; não mais se conhece, se tem expertise; e falar ao telefone ou por videochamada ficou impossível, mas basta desejar e seu equipamento de comunicação fará uma call.

O estereótipo chegou também à forma de anunciar serviços e habilidades. Em grande demanda aparecem as classificações feitas por publicações estrangeiras (sim, para elas também há um anglicismo, rankings), mas que partem do pressuposto de uma comparabilidade fundamental entre diferentes advogados e firmas, com qualidade baseada em quantidade de casos. Outro exemplo é a tradicional exposição de virtude orgulhosa, pretensamente com esteio em políticas inclusivas, muitas vezes, ou, geralmente, em descompasso com a prática.

Mas o leitor chegado até aqui poderia indagar qual o problema disso. Não existem negócios que seguem linhas fixas alhures? Ter formatos repetidos não confere previsibilidade? E quem pode ou deve atirar a primeira pedra contra a tendência tribal da natureza humana de agir em conjunto?

Pois os problemas são dois, e graves. O primeiro é o drama de todo estereótipo no sistema capitalista: a perda de valor quando há repetição sem características diferenciadoras. Para o cliente, contratar um ou outro profissional em nada alteraria o resultado final, dizem indiretamente os próprios ofertantes de serviços. Isso leva a profissão a ser cada vez menos bem paga, sendo o profissional muitas vezes escolhido por intermediários financeiros indiferentes à qualidade do serviço ou marcados por conflitos de interesse. Isso quando a contratação não é feita pelas áreas de compras de grandes organizações empresariais, também responsáveis por suprimentos.

O segundo problema está no caráter estático dos formatos propostos: não mudam, mas se aplicam à realidade em mudança contínua, em país que precisa inovar. Algumas dessas mudanças são (1) a facilidade de se criarem novos escritórios de advocacia a partir de páginas de internet e reuniões virtuais, principalmente depois da pandemia, com a saída justamente dos advogados mais aptos de bancas maiores; (2) a chegada da ainda incipiente inteligência artificial, com potencial para eliminar fases do trabalho que hoje ocupam dezenas de profissionais; e (3) a crise também empresarial brasileira, decorrente da dificuldade em produzir conhecimento relevante para o século 21, para além da riqueza extraída da terra, o que reduz a quantidade e valor de transações.

Tudo isso pode romper modelos de negócio, desvalorizar ainda mais o trabalho jurídico repetitivo, embora mantendo o valor daquele de maior complexidade. Esse efeito deletério será sentido principalmente por grandes organizações de prestação de serviços jurídicos, que hoje passam da dezena no País, com esgotamento do modelo para todas. Ou, no melhor cenário, com a consolidação em duas ou três sobreviventes, desempregando ou privando de perspectivas os colaboradores das demais.

O problema não é geral. Há, claro, profissionais inteligentes e críticos. Mas, quando existe, o que fazer?

A primeira providência seria a reelitização da advocacia, não por critérios de origem social ou econômica dos profissionais, mas pelo critério do conhecimento e da técnica. Desenvolver estruturas mais ágeis, estimulando o preparo acadêmico, reconhecendo e empregando os mais talentosos técnica, intelectual e emocionalmente.

A segunda seria a decorrente valorização de honorários, pois escritório integrado por grupo menor e mais qualificado de advogados não precisa trabalhar a qualquer custo para atender a despesas, pode recusar casos com remuneração insuficiente ou em que a pressão de intermediários leve a conflitos de interesse. Deve sim se voltar para temas em que o conhecimento das regras jurídicas, mas também do negócio em questão, diferenciam os profissionais de um sistema de inteligência artificial. E são muitos esses temas, as infraestruturas do mercado financeiro em radical transformação, os ativos virtuais, o regime jurídico da energia limpa e tantos outros. Temas que, aliás, podem ser desenvolvidos com colegas egressos de empresas da área, conhecedores dos desafios de cada negócio.

E, finalmente, a comunicação honesta com estudantes ou grupos de formação vocacional que nos visitam, mostrando o potencial, mas também os caminhos difíceis da profissão hoje, sempre evitando o efeito palco-plateia e a vaidade daí decorrente.

A frase que inicia este texto, tirada do clássico livro O Leopardo, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, é dita pelo Príncipe de Salina, nobre patriarcal siciliano que instrui o sobrinho na aceitação de mudanças necessárias na Itália que se unificava sob a liderança do norte do país. Ao final de O Leopardo, mortos os personagens, o solar do Príncipe está sendo reformado. Um animal empalhado é jogado pela janela, rodopia no ar com o olhar de humilde reprovação das coisas jogadas fora, e cai, virando pó no pátio. Pois é justamente isso que não podemos deixar acontecer com nossa profissão.


Artigo publicado originalmente no Estadão.

Autores L&S

Eduardo Salomão Neto

Eduardo Salomão Neto

Sócio

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