A representação fiscal para fins penais como instrumento de arrecadação
A Constituição Federal de 1988 proibiu a prisão civil por dívida — “salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”[1], esta última já afastada pela jurisprudência —, mas, passados mais de 30 anos desde sua promulgação, a prisão penal por ilícitos tributários parece cada vez mais aceita no ambiente jurídico, instrumentalizando-se sua utilização das mais diversas formas para forçar o pagamento de dívidas fiscais. Isso a despeito da vocação repressiva e naturalmente subsidiária do Direito Penal.
Crimes tributários são punidos pela Lei 8.137/90 e pelo Código Penal, com condutas que vão desde o não pagamento de tributo mediante fraude até a apropriação presumida de contribuições não repassadas à Previdência Social. Em 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) fixou ainda a polêmica tese de que o não recolhimento contumaz de ICMS constitui apropriação indébita tributária, declarando “que a ausência de recolhimento do imposto não caracteriza mero inadimplemento fiscal”[2], porque o tributo não pertenceria ao contribuinte, transitando apenas temporariamente em sua contabilidade. Com base nesse tipo de entendimento, inúmeras acusações pelo não pagamento de imposto são mantidas diuturnamente nas mais diversas instâncias, movimentando não apenas as autoridades fiscais, mas também as autoridades judiciárias, que são acionadas quando a cobrança da dívida acaba não resultando em pagamento.
Tudo isso é reforçado pela existência de dever de representação fiscal para fins penais (RFFP) estabelecido pela Portaria RFB 1.750/18 aos Auditores Fiscais “sempre que, no exercício de suas atribuições, identificar[em] fatos que configuram, em tese: I – crime contra a ordem tributária ou contra a Previdência Social; ou II – crime de contrabando ou de descaminho”[3]. Após pronunciamento final na instância administrativa[4], a Portaria RFB 1.750/18 determina que a RFFP será enviada ao Ministério Público Federal.
O que se vê na realidade da advocacia, no mais das vezes, é que as RFFP, recorrendo a uma inaceitável simplificação de responsabilidades, indicam como autores de infração penal indivíduos cujo único crime foi constar do contrato social de determinada pessoa jurídica, sem qualquer preocupação em estabelecer sua vinculação com a conduta de não recolher tributo. Em outros casos, a RFFP apenas repete o que foi escrito no lançamento fiscal, como se os critérios para definir a existência de tributo suprissem a ausência de individualização de responsabilidade.
Apesar da referida deficiência, a Portaria RFB 1.750/18 estabelece ainda uma insólita divulgação periódica pela Internet de lista com informações relativas às representações encaminhadas às autoridades, apresentando enquadramento típico preliminar, nomes e CPFs das pessoas que teriam, em tese, praticado crime fiscal[5].
Para justificar a adoção de tal expediente, a RFB argumentou que a disponibilização de informações se fundamentaria no artigo 198, § 3º, I, do Código Tributário Nacional (CTN), que não veda a divulgação de informações relativas à RFFP, e na Lei 12.527/11, conhecida como Lei de Acesso à Informação (LAI). O objetivo seria, em resumo, promover “transparência fiscal”[6].
Nenhum desses argumentos se justifica.
Primeiro, porque as autoridades fiscais não podem atribuir juridicamente a alguém a prática de crime — podendo apenas reportar a existência de indícios ao Ministério Público. E o processo administrativo não serve para individualizar responsabilidade penal, que depende, por expressa disposição da lei, da prática de conduta criminosa, seja por ação, seja por omissão, exigindo-se ainda o trânsito em julgado de sentença penal condenatória para que alguém seja considerado (ou tratado como) culpado pela prática de crime[7].
Segundo, o artigo 198, § 3º, I, do CTN, não é vedada a divulgação de informações relativas à RFFP, mas essa norma precisa de interpretação não literal, dado o sistema em que se insere. De fato, o juízo teórico da RFB acerca da prática de crime fiscal é precário e insuficiente para se dar prevalência ao direito à informação (artigo 5º, XXXIII, da CF) em detrimento da proteção da intimidade e da honra (artigo 5º, X, da CF). Estar-se-ia admitindo a imputação pública de conduta teoricamente criminosa ao contribuinte antes da instauração de inquérito, antes do oferecimento de denúncia, e muito antes da existência de qualquer sentença condenatória, o que viola o mais básico princípio de presunção de inocência.
Ademais, a publicidade dada pela RFB é incompatível com o dever de sigilo imposto ao Ministério Público com relação às mesmas informações constantes da RFFP. Quando do julgamento do Tema 990 da Repercussão Geral, o Supremo Tribunal Federal decidiu ser constitucional o compartilhamento da RFFP com o Ministério Público, mas este deveria resguardar o “sigilo das informações em procedimentos formalmente instaurados e sujeitos a posterior controle jurisdicional”, sem exceções. Nesse sentido, interpretação sistemática nos leva à conclusão de que a divulgação de informações por parte da Receita há de ser feita apenas ao Ministério Público, independentemente de autorização judicial, para fins exclusivos de persecução penal.
Terceiro, a LAI não parece dar guarida ao procedimento adotado pela Receita Federal. Ao revés, o que se extrai da lei é que as informações das RFFP divulgadas na Internet poderiam ser enquadradas como informação pessoal, pois, em última análise, tratam da honra e imagem do contribuinte (artigo 31 da LAI). Como tal, mereceriam tratamento restrito, ainda mais ao se considerar que a RFFP é fruto de um juízo teórico e precário exercido pela Receita, que ainda será apreciado pelo titular da ação penal.
Por sua vez, a Lei 13.709/18, conhecida como Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), também advoga contra o procedimento adotado pela RFB ao dispor que o tratamento de dados pessoais deve, pelo princípio da necessidade, se limitar ao mínimo necessário para a realização de suas finalidades (artigo 6). A divulgação das RFFP enviadas ao Ministério Público vai muito além do que poderia se considerar como mínimo necessário. E apesar de a LGPD não se aplicar a hipóteses de tratamento de dados pessoais para fins exclusivos de investigação e repressão de infrações penais, tal exceção não se aplica à Receita, que não possui competência para tanto. E mesmo os órgãos que detêm tal atribuição devem restringir o tratamento ao proporcional e estritamente necessária ao atendimento do interesse público (artigo 4º).
A própria Lei 13.869/19, conhecida como Lei de Abuso de Autoridade, reconhece a abusividade da divulgação de determinados materiais (no caso, gravações) que exponham a intimidade ou a vida privada do investigado ou firam sua honra ou imagem quando não há “relação com a prova que se pretenda produzir” (artigo 28) — raciocínio que poderia ser estendido, por reforma legislativa, para alcançar o comportamento de expor desnecessariamente o encaminhamento de RFFP ao MPF, para dar início a investigação penal.
Enquanto isso não ocorre, cabe alertar para o excesso que decorre da divulgação ao público de listas pela Receita Federal, avaliando-se a constitucionalidade dessa medida à luz do princípio da presunção de inocência — e mesmo do devido processo legal, ante os impactos concretos que essa publicidade gera em termos de isenção para julgamento futuro — para que os contribuintes não sejam indevidamente penalizados pelo simples encaminhamento de RFFP às autoridades que avaliarão se houve ou não a prática de crime.
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[1] Artigo 5º, inciso LXVII.
[2] Nesse sentido:
https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=433114&ori=1#:~:text=STF%20define%20tese%20que%20criminaliza,quando%20cometida%20intencionalmente%20pelo%20contribuinte
[3] Artigo 2º da Portaria RFB n.º 1.750/18.
[4] Essa previsão se alinha com o entendimento da jurisprudência de que o crime tributário apenas se consuma com o encerramento da discussão administrativa. Nesse sentido, a Súmula Vinculante n.º 24, do STF: “Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei 8.137/1990, antes do lançamento definitivo do tributo.” Igual entendimento vem sendo utilizado em outros tipos penais tributários, não previstos na Lei n.º 8.137/90.
[5] Conforme dispõe o artigo 16, §2º, da Portaria RFB n.º 1.750/18, o contribuinte pode ter seu nome excluído (i) “quando o crédito tributário a que se refere o processo de representação for extinto, inclusive mediante quitação de parcelamento”; (ii) “quando, por decisão administrativa ou judicial, a pessoa deixar de ser considerada responsável ou corresponsável pelo fato que, em tese, configura o ilícito penal objeto da representação”; ou (iii) “por determinação judicial”. Se a hipótese de exclusão for a extinção do crédito tributário, inclusive pelo fato de ter sido pago, a norma estabelece que caberá “à pessoa contra a qual a representação fiscal para fins penais foi formalizada solicitar a exclusão das informações” (§3º).
[6] Nota da Receita Federal. “Receita Federal publica norma sobre representação fiscal para fins penais”.
[7] Artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Autores:
NATASHA DO LAGO – Advogada. Doutoranda e mestre em Direito Penal pela USP. Conselheira e Coordenadora da 2ª Turma Julgadora do Conselho de Prerrogativas da OAB-SP. Sócia do escritório Ráo & Lago Advogados.
FELIPE KNEIPP SALOMON – Especialista em Direito Empresarial pela Fundação Getulio Vargas e mestre em Contabilidade (Organizações e Instituições) pela London School of Economics and Political Science, onde recebeu o prêmio de Excelência Acadêmica em Contabilidade da St. James’s Place Academy. Advogado do Levy & Salomão Advogados.
Artigo publicado no Jota