A inefetividade da dispensa de garantia na lei do Carf

O voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) foi restabelecido por meio da Lei 14.689/2023. Uma das contrapartidas negociadas foi a dispensa da apresentação de garantia para discussão judicial dos créditos resolvidos favoravelmente à União pelo voto de qualidade (art. 4º). No entanto, tal previsão é limitada e incompleta, o que pode tornar o dispositivo inexequível.

A dispensa de garantia é limitada, pois a única medida judicial de iniciativa do contribuinte que exige garantia prévia são os embargos à execução fiscal. Não há tal exigência para propositura de ações anulatórias ou mandados de segurança.

A previsão é também incompleta. O art. 4º não institui nova hipótese de suspensão da exigibilidade do crédito tributário, estas taxativamente elencadas no art. 151 do Código Tributário Nacional (CTN). Tampouco é hipótese autorizadora da emissão de certidão de regularidade fiscal, como expressamente disposto no vetado art. 5º do projeto que deu origem à supracitada lei.

O citado art. 5º facultava ao executado garantir, por meio de seguro garantia ou carta fiança, apenas o principal atualizado do crédito tributário objeto de execução fiscal. Previa também que tal garantia reduzida produziria os mesmos efeitos da penhora da integralidade do valor em execução, possibilitando a emissão de certidão positiva com efeitos de negativa (CPEN), na forma do art. 206 do CTN.

Como se pode ver, alguns problemas importantes surgem ante a incompletude da norma.

Primeiro: sendo exigível o crédito tributário, não haveria óbice legal para a PGFN requerer a adoção de atos constritivos e expropriatórios na pendência de julgamento definitivo dos embargos à execução fiscal.

Segundo: uma das condições para se valer da dispensa de garantia é a de que o contribuinte não tenha outros créditos tributários para com a Fazenda Pública em situação de exigibilidade. Se o art. 4º não representa causa suspensiva, o contribuinte poderia se valer da dispensa de garantia apenas uma vez. Quando da execução de segundo crédito decidido por voto de qualidade, o contribuinte, por já ter um crédito tributável exigível, não poderia mais pleitear o benefício em questão.

Terceiro: não constando do art. 4º expressa previsão de que o crédito decidido por voto de qualidade será gravado com condição que permita a emissão de CPEN, o contribuinte poderia se ver na situação de não precisar de garantia para oposição de embargos à execução, mas sim para renovação de sua CPEN. E ainda: na eventualidade de a PGFN demorar a executar o crédito decidido por voto de qualidade, o contribuinte poderia ver sua CPEN vencer. Ficando sem certidão de regularidade fiscal por mais de três meses no intervalo de 12 meses que “antecederam o ajuizamento da medida judicial que tenha por objeto o crédito”, o contribuinte perde o direito à dispensa de garantia (requisito objetivo do art. 4º).

Quarto: a dispensa de garantia de crédito decidido por voto de qualidade se aplica apenas aos contribuintes com “capacidade de pagamento”, que será aferida considerando-se o patrimônio líquido do sujeito passivo. Porém, os aspectos específicos e quantitativos dessa definição ainda dependem de regulamentação da PGFN. Regulamentação análoga, que trata da determinação da capacidade de pagamento para fins de transação tributária, tem sido objeto de críticas por seu uso de metodologia pouco clara.

O contribuinte poderia ajuizar ação anulatória ou mandado de segurança imediatamente após o fim do contencioso administrativo para requerer liminar suspensiva da exigibilidade do crédito. Todavia, nesse caso, estando o contribuinte sujeito ao arbítrio do juiz e sem garantia de suspensão de exigibilidade, de nada teria servido o art. 4º da Lei 14.689/2023.

Obviamente, os entraves discutidos acima contrariam a essência da lei. Para evitar a insegurança jurídica que pode se instaurar, o legislador deveria ter sido claro quanto aos efeitos práticos da dispensa de garantia. Dependeremos agora da regulamentação a ser expedida pela PGFN, que, para se manter alinhada ao propósito da norma, deveria dispor, no mínimo, sobre:

• crédito tributário mantido pelo voto de qualidade não obsta a emissão de CPEN;

• qualquer ato constritivo ou expropriatório será requerido e adotado apenas depois do trânsito em julgado do processo judicial (sejam embargos à execução, ação de rito ordinário ou mandado de segurança) que discuta o crédito controvertido; e

• mesmo estando exigível o crédito decidido pelo voto de qualidade, tal situação não deflagrará a condição o inciso IV, § 2º, do art. 4º, de modo que, na eventualidade de a PGFN executar novo crédito decidido por voto de qualidade, o contribuinte ainda estará dispensado da apresentação de garantia.

A dispensa de garantia prevista no art. 4º da Lei 14.689/2023 tem um propósito claro: ante a dúvida do Carf na resolução da matéria, dá-se ao contribuinte o direito de levar a questão ao Judiciário para reexame sem custo com garantia, sem receio de sofrer atos constritivos e expropriatórios e com o direito de manter seu status fiscal regular. No entanto, da forma como está redigida, a norma não confere a segurança jurídica necessária para garantir tais objetivos.

Autores L&S

Felipe Kneipp Salomon

Felipe Kneipp Salomon

Advogado
Victor de Assis Vidal

Victor de Assis Vidal

Advogado

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