Dono de dois poços artesianos, um centro comercial na zona oeste de São Paulo precisou desativá-los em 2009. Os poços eram utilizados para complementar seu consumo de água, fornecido em maior parte pela rede pública. A desativação era uma das exigências do novo contrato oferecido pela fornecedora principal, a Sabesp. A estatal oferecia descontos de até 40% na conta como contrapartida ao consumo exclusivo de sua água tratada. O contratante, por sua vez, teria de pagar um valor mínimo mensal, mesmo que o consumo ficasse abaixo do contratado.
Hoje, às voltas com a seca e o risco de desabastecimento, a empresa - que pede para não ser identificada - tenta reativar os poços fechados com anuência da Sabesp. A estatal flexibilizou os contratos de exclusividade, permitindo o uso dos poços ou caminhões-pipa depois do agravamento da crise hídrica. Nesse e em outros casos, a flexibilização não surtiu efeito: "O poço não existe mais; secou", disse um porta-voz do empreendimento. "Estamos há meses tentando perfurá-lo novamente e não conseguimos mais." Para evitar que se tornem fontes de contaminação, os poços devem ser cimentados quando inativos, o que pode inutilizá-los de forma permanente.
Esse é um exemplo de como funciona e em que acarreta hoje o programa Demanda Firme, modalidade de contrato de fidelização de grandes clientes criado pela Sabesp em 2007. Cartilhas antigas dão conta de que os benefícios do programa, além da economia financeira, passavam também por garantir água de qualidade às empresas e aumentar a eficiência e o controle sobre o consumo, sujeito a muita irregularidade no mercado complementar. Depois que a maior seca das últimas décadas colocou a capacidade de abastecimento da companhia em xeque, a efetividade do programa passou a ser questionada por especialistas, concorrentes e consumidores.
"Em uma situação de conforto de oferta, é natural que as empresas busquem ampliar a base de clientes, aumenta o faturamento dela. Mas não é o caso de São Paulo. Mesmo com as represas cheias, a cidade já vive no osso", disse o diretor do Centro de Pesquisas de Água Subterrânea (Cepas) da Universidade de São Paulo, Reginaldo Bertolo. As críticas passam pelo fato de que o programa desestimularia tanto a economia no consumo quanto a busca por fontes alternativas em um cenário de recursos limitados. Além disso, o modelo de contrato - oferta casada de produto (água) ao serviço de esgoto, exclusivo da Sabesp - pode infringir a lei da concorrência.
"Vimos muitas empresas desativarem seus poços, perdemos muitos clientes. Eram empresas que tinham sistemas próprios e os fecharam para ir para a concessionária", conta Sérgio Pontremolez, geólogo da empresa de perfuração e serviços de abastecimento General Water.
"É uma medida que ajuda a Sabesp a aumentar o faturamento, mas, do ponto de vista ambiental, deveria ser o contrário. Estimula os grandes consumidores a se conectarem à rede, o que, na prática, é tirar água da população", avalia Cláudio Pereira, geólogo de outra perfuradora da grande São Paulo, a Hidromapper. "Os grandes podem arcar com uma estrutura alternativa, mas as residências não."
Shoppings, clubes, prédios de escritórios e fábricas da Grande São Paulo estão na lista de clientes que abandonaram os serviços de Pontremolez, Pereira e outros representantes do setor ou fecharam seus poços para aderir às vantagens do Demanda Firme. Muitos agora buscam reativar o fornecimento alternativo de água.
O Demanda Firme pertence à divisão de Soluções Ambientais da Sabesp, um conjunto de políticas de eficiência que incluí também sistemas especiais de tratamento de esgoto e fornecimento de água de reúso para processos industriais. É voltado para estabelecimentos que consumam mais de 3 mil metros cúbicos de água (3 milhões de litros) por mês, o equivalente a uma fábrica pequena. General Motors, Casas Pernambucanas, Shopping Center Norte e Jockey Clube são alguns dos clientes que aderiram na época, além também de órgãos públicos como o Metrô e a SPTrans.
O programa prevê um consumo mínimo, acordado em contrato e variável conforme o caso. Se o piso for, por exemplo, de 3 mil metros cúbicos e o cliente consumir menos, pagará pelos 3 mil da mesma forma. Nos meses em que ultrapassar o piso, paga a diferença. A tarifa também é avaliada e fechada a cada contrato, mas pode ser até 40% menor que as de mercado. Hoje, a tarifa industrial cheia da Sabesp é de R$ 13,12 para cada metro cúbico de água, e em geral é cobrada como nas residências: para cada unidade de água consumida, são cobrados outros R$ 13,12 em esgoto, um total de R$ 26,24 por metro cúbico, já que a água usada volta depois para a rede da própria Sabesp como esgoto para ser tratada.
Nessas condições, tanto poços quanto caminhões-pipa custam menos. O consumidor de 3 mil metros cúbicos de água, por exemplo, teria conta de água mensal de R$ 78,7 mil pela tarifa padrão da Sabesp, sendo R$ 39,4 mil de água e os outros R$ 39,4 mil em esgoto. O litro de água dos caminhões-pipa, antes de dispararem os preços com a estiagem, costumavam ser em média 30% mais baratos. Nos poços, os maiores investimentos estão na construção, manutenções periódicas e nos trâmites para o licenciamento, mas, na média, o custo mensal não passa de R$ 900.
Nos dois casos, no entanto, a economia abate apenas a "metade" da água na conta. Os R$ 39,4 mil equivalentes em esgoto devem, em teoria, continuar sendo pagos para a Sabesp, única proprietária da rede de captação. Como a companhia perde com isso a medição de água daquele cliente, perde também a precisão de quanto cobrá-lo pelo esgoto - ponto inclusive que serviu de base para a criação do Demanda Firme, como forma de ampliar o controle sobre esses volumes que a rede pública acabava eventualmente tendo que arcar sem no entanto ter recebido por isso.
"Se eu comparar o custo da água da Sabesp com o de caminhões eu tenho um ganho de 10%", dizia o gerente ambiental de uma fábrica de produtos químicos de Barueri em um vídeo institucional, de 2010, feio pela Sabesp e disponível em sua página sobre o programa. "Mas o grande ganho financeiro foi que, comprando 100% da água com a Sabesp, eu teria 27% de desconto no tratamento de efluente. Economizamos alguns milhares de dólares." Antes do contrato, 90% da água usada na fábrica vinha de caminhões-pipa.
O problema, para alguns, é que essa forma de desconto, a depender das condições, pode ferir a livre concorrência. "Pode ser um desconto cruzado, quando a empresa oferece dois produtos e, para ter desconto em um você tem que consumir o outro", diz o advogado especialista em concorrência Alexandre Faraco, do escritório Levy & Salomão. Ou seja: o cliente só ganha desconto no esgoto se levar a água também.
Isso se agrava com o fato de que, embora as pequenas concorrentes pudessem tentar cobrir o novo preço da água, nada podem oferecer em relação ao esgoto. "Ela entrou no mercado com isso e ficou impossível disputar. Eu teria que dar, na minha água, o desconto que ela tinha na água e no esgoto. Se eu baixasse o preço do meu metro cúbico a R$ 1 ainda estaria atrás dela", explicou Carlos Giampá, geólogo da DH Perfurações e conselheiro da Associação Brasileira de Águas Subterrâneas (Abas)."
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